terça-feira, 28 de abril de 2015

FILME NOIR: Algumas Reflexões

Uma atmosfera, um tom, uma mania, uma movimento, uma onda, um experimento, um estilo ou um gênero? Ao lado de consagrados autores vamos refletir sobre o que é (ou foi, ou será) o Filme Noir? 


Relíquia Macabra/O Falcão Maltês (1941), de John Huston. Considerado  o primeiro film noir da história do cinema, onde "a iluminação releta de contrastes e os enquadramentos distorcidos de (Arthur) Edson criam uma atmosfera inquieta e melancólica" (KEMP, 2011), o que seria visto nos demais filmes do gênero. A temática  envolve um detetive particular, Sam Spade, vivido por Hunphrey Bogart. 
Segundo Fernando Mascarello, autor do capítulo sobre o cinema noir no livro História do Cinema Mundial, é muito difícil definir uma data ou filme que inicia esse gênero no cinema. Tamanha é a dificuldade de definir filmes como sendo de tal gênero, que alguns autores defendem que o cinema noir nem chegou a existir. Em seu capítulo, entretanto, o autor tenta conciliar as teorias dos que acreditam e dos que não acreditam no cinema noir como um gênero específico, examinando a gênese e o percurso do termo noir, os traços que definem o gênero e os argumentos favoráveis e contrários a sua existência. A conclusão é que o noir existe e, mais que isso, influencia o cinema até hoje. Como ponto de partida, o filme considerado como o primeiro do gênero (ou seria estilo, atmosfera, ou uma aparência?) é Relíquia Macabra/O Falcão Maltês (1941), de John Huston.
O termo noir foi criado na França por críticos desse país, no período pós Segunda Guerra Mundial, quando os franceses estavam privados do cinema e buscavam novas distrações em filmes queantecipariam o tom escurecido da fotografia e a temática crítica e fatalista, relacionada às problemáticas da guerra, que serão vistos nos filmes noir. Quando o termo chegou aos Estados Unidos, apesar de ser aceito de imediato, provocou uma dúvida em relação a sua precisão e consistência, já que nem mesmo na França havia uma unidade. O noir remonta às sombras, aos ângulos e ao mundo paranoico do Expressionismo Alemão e, certamente, aos refugiados do nazismo como Fritz Lang, Robert Siodmak e Karl Freund. Nesse contexto, tudo era explorado de forma a evidenciar a sensação de claustrofobia existencial e de duplicidade misteriosa. Para definir o cinema noir americano, segundo Mascarello, podemos dividi-lo em três estudos simples – temática, narrativa e estilo – e destrinchá-los.

 Plano plongée (o enquadramento noir por excelência) de O Terceiro homem (1949), de Carol Reed.Segundo Kim Newman, o filme "é uma mistura intrigante de suspense político, drama romântico, mistério gótico e poesia em preto e branco."
A temática do cinema noir hollywoodiano é cercada pela problematização do mal-estar americano pós-guerra (criticando a corrupção de valores éticos e da brutalidade e hipocrisia nas relações humanas, de classe e de instituições e explorando as desconfianças entre masculino e feminino, gerada pela desestabilização dos papéis sexuais durante a guerra); pela individualidade psíquica e socialmente desajustada; pela atmosfera cruel, paranoica e claustrofóbica. Do ponto de vista narrativo, vê-se a complexidade das tramas e o uso do flashback (que serviam para desorientar o espectador), a narração em over do protagonista masculino, a falta de confiança entre os personagens, a perda da inocência, um cenário hostil, uma sensação de desespero, não linearidade. Do ponto de vista estilístico, pode-se citar a iluminação low-key (com profusão de sombras), o emprego de lentes grande-angulares (deformadoras da perspectiva) e o corte do big close-up para o plano geral em plongée (este, o enquadramento noir por excelência). Além disso, o uso de objetos como espelhos, janelas, escadas e relógios (que remetem ao tempo, à fuga, ao reflexo indesejado), a ambientação à noite (TSC – as ruas escuras e úmidas das metrópoles criavam o cenário perfeito para os acontecimentos aterrorizantes e a atmosfera de desconforto do cinema noir) o uso de palavras específicas nos títulos (nightcitystreetdarklonelymirrorwindowkillingKissdeathpanic,fearcry), segundo Mascarello, são outras características muito típicas.
O cinema noir era, também, um reflexo da sociedade e dos acontecimentos da época. A ansiedade a respeito da Segunda Guerra Mundial (e, mais tarde, em relação à Guerra Fria) era muito comum. Em Relíquia Macabra, por exemplo, mesmo que tenha sido filmado antes da guerra, nota-se a tensão que o clima na Europa já fazia refletir no mundo todo e em O Terceiro homem (1949), de Carol Reed, vê-se uma Viena (como referência à Europa) afundada no caos do pós-guerra. Com seus anti-heróis clássicos e suas femmes fatales incomparáveis, o cinema noir serviu como uma reação aos musicais e comédias românticas hollywoodianos da época. Entre aqueles personagens masculinos e femininos, pode-se verificar uma problematização dos gêneros e da sexualidade, evidenciando-se intensa rivalidade entre o masculino e o feminino. Isso tudo vinha em decorrência das modificações dos papéis sexuais durante a mobilização militar e da disputa de mercado de trabalho, o que trazia uma ansiedade com relação à existência e à definição da masculinidade e da normalidade. Nesse contexto, verifica-se um tipo de homem muito comum no cinema noir: raramente bonzinhos (geralmente são anti-heróis), são cínicos, impiedosos, nada sentimentais, sempre querem levar a vantagem. Homens solitários, inseguros, desiludidos, incertos quanto ao próprio caráter e apáticos quanto ao futuro; e dois tipos de mulheres: são dóceis e amáveis ou são femmes fatales (deslumbrantes, misteriosas, ambíguas e dispostas a qualquer coisa pra saírem por cima). Em Um Corpo que Cai (1958), de Alfred Hitchcock, por exemplo, a amiga do protagonista representa o primeiro tipo, a mulher que o protagonista deve vigiar representa o segundo tipo. Metaforicamente, a femme fatale é a personificação da independência alcançada pela mulher durante a Segunda Guerra, ao mesmo tempo em que as mulheres simbolizam as tentações e os perigos da domesticação do herói.

Kim Novak como a femme fatale de Um Corpo que Cai (1958), de Alfred Hitchcock, através de quem, sengundo Mascarello, "o noir procura reforçar a masculinidade ameaçada e restabelecer simbolicamente o equilíbrio perdido."
Além das mulheres, vale apontar Um Corpo que cai como um bom exemplo do cinema noir em cores. A história, por exemplo, gira em torno de um homem e seus problemas psicológicos, tanto em relação às mulheres a sua volta, quanto em relação aos seus medos e anseios. O tema dos conflitos internos do homem, como foi apontado, é muito recorrente nos filmes noir. As vertigens do protagonista são uma forma de confundir o espectador, bem como as histórias que giram em torno da protagonista (os problemas psicológicos da mulher e sua morte, por exemplo). A moralidade por trás do filme também deve ser apontada: a personagem de Kim Novak foi contratada por um homem para enganar o personagem de James Stewart, entretanto, ela se apaixona por ele e os sentimentos começam a se tornar ambíguos. O que a personagem deve fazer? Cumprir com o combinado e não deixar que Stewart a descubra, ou revelar sua paixão por ele e contar toda a verdade? Os ambientes do longa também são característicos dos filmes noir: ambientes urbanos contemporâneos (casa dos personagens centrais) e locações exóticas (mosteiro onde a personagem de Kim Novak “morre”). A fotografia em cores não saturadas é outro exemplo do cinema noir, bem como o uso de cores mais neutras.
Apesar do sucesso dos filmes noir, muitos críticos e pesquisadores afirmam que ele não foi um gênero. Em primeiro lugar, porque não há de se encontrar a totalidade das características definidoras do noir em um único filme. Pior que isso: muitas das obras essenciais que representam o cinema noir não abrangem vários dos traços considerados fundamentais. Também há um problema na hora de definir o cinema noir como um gênero, pois ele agrega vários gêneros (policial, thriller, filmes de espionagem, melodramas e até mesmo westerns), além disso, é confusa a sua definição como gênero, ou atmosfera, ou tom, ou movimento, ou estilo, por exemplo, como alguns pesquisadores o definem. Outra problemática diz respeito à técnica utilizada, que já era vista, mesmo que de forma mais tímida, em filmes da década de 1940. A narrativa é outro ponto a ser observado: filmes daquela década já abordavam a questão dos gêneros e da sexualidade, e exploravam as mesmas suspeitas e ansiedades em relação ao sexo oposto, mas do ponto de vista feminino.

 Plano contra plongée de A Marca da maldade (1958), de Orson Welles. Para Phillip Kemp, "O filme ficou famoso por sua tomada aberta e sem interrupção com três minutos de duração e por sua cena final de persiguição, com visual extravagante e efeitos sonoros experimentais." 
Durante as décadas de 1940 e 1950, o cinema noir ganhou uma atmosfera ainda mais sombria e fatalista: as áreas escuras se tornaram melancólicas e transgressoras, as luzes, mais ousadas e histéricas, o enquadramento, mais vertiginoso. O pós-guerra obscurecia mais ainda a estrutura devido à paranoia anticomunista, à desorientação, à sensação de vazio. Alguns filmes da época foramInterlúdio (1946), A Dália azul (1946) e Farrapo humano (1945). Considerado o último filme do cinema noir, A Marca da maldade (1958), de Orson Welles, ficou famoso devido ao plano-sequência de três minutos do início do filme e pela cena de perseguição do desfecho, com um visual extravagante e efeitos sonoros experimentais. Apesar de o cinema noir ainda ser pouco definitivo como um gênero (ou estilo, ou o que seja), é um fato inegável que os filmes pertencentes ao noir inovaram, expressando sutilmente as complicações masculinas e femininas e adotando esse aspecto sombrio e fatalista, o que influenciou e ainda influencia dezenas de cineastas no mundo todo. Alguns exemplos de filmes noir contemporâneos que podem se citados são Cães de aluguelEstrada perdida,ChicagoFargoInsônia e Sin City.

REFERÊNCIAS:
COUSINS, Mark. História do cinema: dos clássicos mudos ao cinema moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
KEMP, Phillip. Tudo sobre cinema. Rio de Janeiro: Sextante, 2011.
MASCARELLO, Fernando (org.). História do cinema mundial. São Paulo: Papirus, 2012

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