Uma atmosfera, um tom, uma mania, uma movimento, uma onda, um experimento, um estilo ou um gênero? Ao lado de consagrados autores vamos refletir sobre o que é (ou foi, ou será) o Filme Noir?
Segundo
Fernando Mascarello, autor do capítulo sobre o cinema noir no livro História
do Cinema Mundial, é muito difícil definir uma data ou filme que inicia
esse gênero no cinema. Tamanha é a dificuldade de definir filmes como sendo de
tal gênero, que alguns autores defendem que o cinema noir nem chegou a existir.
Em seu capítulo, entretanto, o autor tenta conciliar as teorias dos que
acreditam e dos que não acreditam no cinema noir como um gênero específico,
examinando a gênese e o percurso do termo noir, os traços que definem o gênero
e os argumentos favoráveis e contrários a sua existência. A conclusão é que o
noir existe e, mais que isso, influencia o cinema até hoje. Como ponto de
partida, o filme considerado como o primeiro do gênero (ou seria estilo,
atmosfera, ou uma aparência?) é Relíquia Macabra/O Falcão Maltês (1941),
de John Huston.
O termo noir
foi criado na França por críticos desse país, no período pós Segunda Guerra
Mundial, quando os franceses estavam privados do cinema e buscavam novas
distrações em filmes queantecipariam o tom escurecido da fotografia e a
temática crítica e fatalista, relacionada às problemáticas da guerra, que serão
vistos nos filmes noir. Quando o termo chegou aos Estados Unidos, apesar de ser
aceito de imediato, provocou uma dúvida em relação a sua precisão e
consistência, já que nem mesmo na França havia uma unidade. O noir remonta às
sombras, aos ângulos e ao mundo paranoico do Expressionismo Alemão e,
certamente, aos refugiados do nazismo como Fritz Lang, Robert Siodmak e Karl
Freund. Nesse contexto, tudo era explorado de forma a evidenciar a sensação de
claustrofobia existencial e de duplicidade misteriosa. Para definir o cinema
noir americano, segundo Mascarello, podemos dividi-lo em três estudos simples –
temática, narrativa e estilo – e destrinchá-los.
A temática do
cinema noir hollywoodiano é cercada pela problematização do mal-estar americano
pós-guerra (criticando a corrupção de valores éticos e da brutalidade e
hipocrisia nas relações humanas, de classe e de instituições e explorando as
desconfianças entre masculino e feminino, gerada pela desestabilização dos
papéis sexuais durante a guerra); pela individualidade psíquica e socialmente
desajustada; pela atmosfera cruel, paranoica e claustrofóbica. Do ponto de
vista narrativo, vê-se a complexidade das tramas e o uso do flashback (que
serviam para desorientar o espectador), a narração em over do protagonista
masculino, a falta de confiança entre os personagens, a perda da inocência, um
cenário hostil, uma sensação de desespero, não linearidade. Do ponto de vista
estilístico, pode-se citar a iluminação low-key (com profusão
de sombras), o emprego de lentes grande-angulares (deformadoras da perspectiva)
e o corte do big close-up para o plano geral em plongée (este, o
enquadramento noir por excelência). Além disso, o uso de objetos como espelhos,
janelas, escadas e relógios (que remetem ao tempo, à fuga, ao reflexo
indesejado), a ambientação à noite (TSC – as ruas escuras e úmidas das metrópoles
criavam o cenário perfeito para os acontecimentos aterrorizantes e a atmosfera
de desconforto do cinema noir) o uso de palavras específicas nos títulos (night, city, street, dark, lonely, mirror, window, killing, Kiss, death, panic,fear, cry),
segundo Mascarello, são outras características muito típicas.
O cinema noir
era, também, um reflexo da sociedade e dos acontecimentos da época. A ansiedade
a respeito da Segunda Guerra Mundial (e, mais tarde, em relação à Guerra Fria)
era muito comum. Em Relíquia Macabra, por exemplo, mesmo que tenha sido
filmado antes da guerra, nota-se a tensão que o clima na Europa já fazia
refletir no mundo todo e em O Terceiro homem (1949), de Carol
Reed, vê-se uma Viena (como referência à Europa) afundada no caos do pós-guerra.
Com seus anti-heróis clássicos e suas femmes fatales incomparáveis, o cinema noir serviu como uma reação aos
musicais e comédias românticas hollywoodianos da época. Entre aqueles
personagens masculinos e femininos, pode-se verificar uma problematização dos
gêneros e da sexualidade, evidenciando-se intensa rivalidade entre o masculino
e o feminino. Isso tudo vinha em decorrência das modificações dos papéis
sexuais durante a mobilização militar e da disputa de mercado de trabalho, o
que trazia uma ansiedade com relação à existência e à definição da
masculinidade e da normalidade. Nesse contexto, verifica-se um tipo de homem
muito comum no cinema noir: raramente bonzinhos (geralmente são anti-heróis),
são cínicos, impiedosos, nada sentimentais, sempre querem levar a vantagem.
Homens solitários, inseguros, desiludidos, incertos quanto ao próprio caráter e
apáticos quanto ao futuro; e dois tipos de mulheres: são dóceis e amáveis ou
são femmes fatales (deslumbrantes, misteriosas, ambíguas e
dispostas a qualquer coisa pra saírem por cima). Em Um Corpo que Cai (1958),
de Alfred Hitchcock, por exemplo, a amiga do protagonista representa o primeiro
tipo, a mulher que o protagonista deve vigiar representa o segundo tipo.
Metaforicamente, a femme fatale é a personificação da
independência alcançada pela mulher durante a Segunda Guerra, ao mesmo tempo em
que as mulheres simbolizam as tentações e os perigos da domesticação do herói.
Além das
mulheres, vale apontar Um Corpo que cai como um bom exemplo do
cinema noir em cores. A história, por exemplo, gira em torno de um homem e seus
problemas psicológicos, tanto em relação às mulheres a sua volta, quanto em
relação aos seus medos e anseios. O tema dos conflitos internos do homem, como
foi apontado, é muito recorrente nos filmes noir. As vertigens do protagonista
são uma forma de confundir o espectador, bem como as histórias que giram em
torno da protagonista (os problemas psicológicos da mulher e sua morte, por
exemplo). A moralidade por trás do filme também deve ser apontada: a personagem
de Kim Novak foi contratada por um homem para enganar o personagem de James
Stewart, entretanto, ela se apaixona por ele e os sentimentos começam a se
tornar ambíguos. O que a personagem deve fazer? Cumprir com o combinado e não deixar
que Stewart a descubra, ou revelar sua paixão por ele e contar toda a verdade?
Os ambientes do longa também são característicos dos filmes noir: ambientes
urbanos contemporâneos (casa dos personagens centrais) e locações exóticas
(mosteiro onde a personagem de Kim Novak “morre”). A fotografia em cores não
saturadas é outro exemplo do cinema noir, bem como o uso de cores mais neutras.
Apesar do
sucesso dos filmes noir, muitos críticos e pesquisadores afirmam que ele não
foi um gênero. Em primeiro lugar, porque não há de se encontrar a totalidade
das características definidoras do noir em um único filme. Pior que isso:
muitas das obras essenciais que representam o cinema noir não abrangem vários
dos traços considerados fundamentais. Também há um problema na hora de definir
o cinema noir como um gênero, pois ele agrega vários gêneros (policial,
thriller, filmes de espionagem, melodramas e até mesmo westerns), além disso, é
confusa a sua definição como gênero, ou atmosfera, ou tom, ou movimento, ou
estilo, por exemplo, como alguns pesquisadores o definem. Outra problemática
diz respeito à técnica utilizada, que já era vista, mesmo que de forma mais
tímida, em filmes da década de 1940. A narrativa é outro ponto a ser observado:
filmes daquela década já abordavam a questão dos gêneros e da sexualidade, e
exploravam as mesmas suspeitas e ansiedades em relação ao sexo oposto, mas do
ponto de vista feminino.
Durante as
décadas de 1940 e 1950, o cinema noir ganhou uma atmosfera ainda mais sombria e
fatalista: as áreas escuras se tornaram melancólicas e transgressoras, as
luzes, mais ousadas e histéricas, o enquadramento, mais vertiginoso. O
pós-guerra obscurecia mais ainda a estrutura devido à paranoia anticomunista, à
desorientação, à sensação de vazio. Alguns filmes da época foramInterlúdio (1946), A
Dália azul (1946) e Farrapo humano (1945).
Considerado o último filme do cinema noir, A Marca da maldade (1958),
de Orson Welles, ficou famoso devido ao plano-sequência de três minutos do
início do filme e pela cena de perseguição do desfecho, com um visual
extravagante e efeitos sonoros experimentais. Apesar de o cinema noir ainda ser
pouco definitivo como um gênero (ou estilo, ou o que seja), é um fato inegável
que os filmes pertencentes ao noir inovaram, expressando sutilmente as
complicações masculinas e femininas e adotando esse aspecto sombrio e
fatalista, o que influenciou e ainda influencia dezenas de cineastas no mundo
todo. Alguns exemplos de filmes noir contemporâneos que podem se citados
são Cães de aluguel, Estrada perdida,Chicago, Fargo, Insônia e Sin
City.
REFERÊNCIAS:
COUSINS,
Mark. História do cinema: dos clássicos mudos ao cinema moderno. São Paulo:
Martins Fontes, 2013.
KEMP,
Phillip. Tudo sobre cinema. Rio de Janeiro: Sextante, 2011.
MASCARELLO,
Fernando (org.). História do cinema mundial. São Paulo: Papirus, 2012
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