quinta-feira, 30 de julho de 2015

BIOGRAFIA: INGMAR BERGMAN - PARTE I (1918 - 1969)

No dia 14 de julho, o cineasta Ingmar Bergman teria completado 98 anos de vida. Entretanto, o sueco morreu em 2007, completando, hoje, 8 anos desde sua morte. Confira, a biografia de um dos mais enigmáticos cineastas da história do cinema. Ingmar Bergman é um dos maiores cineastas da carreira do cinema, comparado a musicistas como Beethoven ou Dostoyevsky, nada mais justo que essa ser a 500ª postagem do blog!



Em 14 de julho de 1918, a enfermeira Akrin Akerblom deu à luz o segundo filho com o pastor luterano Erik Bergman. Ernest Ingmar Bergman era mais novo que Dag e mais velho que Margareta, que viria quatro anos depois. Dois anos antes dela nascer, a família se mudou para Estocolmo. Durante sua infância, como o próprio diretor relataria, sofreu com o autoritarismo do pai, que chegou a trancá-lo num armário para ensiná-lo a se comportar. Tal fato, foi relembrado pelo protagonista do filme A Hora do Lobo (1968). “Era um tipo de castigo”, disse o pintor Johan, interpretado por Max von Sydow, “Eu estava muito assustado. Eu chutava e batia na porta, porque tinham me dito que havia um anão que vivia naquele armário e que roía os dedos dos pés das crinças travessas”. Em sua biografia, Bergman também conta sobre um episódio, aos dez anos, em que ficou trancado em um necrotério, o que, claro, também estimulou suas ideias mais tarde, inspirando-o para os roteiros de A Hora do Lobo, Persona e Gritos e Sussurros.

Rumo à Felicidade (1950)
Dois anos depois do ocorrido no necrotério, o menino foi, pela primeira vez, a uma peça de teatro: Stor Klas och Lill Klas (Grande Noel e Pequeno Noel). Fascinado, aos 20 anos, Ingmar entrou para a Universida de Estocolmo e, logo em seu primeiro ano, dirigiu sua primeira peça. Daí por diante, o futuro cineasta começou a se dedicar a fundo no teatro, passando a montar cerca de seis peças por ano. Desde as peças, os trabalhos de Bergman já eram notáveis e era surpreendente ver alguém trabalhando tanto em projetos de tanta qualidade. Após ser contratado pela produtora Svensk Filmindustri e escrever o roteiro e atuar como assistente de direção de Hets (1944), de Alf Sjöberg, entre julho e agosto de 1945, Bergman gravou seu primeiro longa. Crise foi lançado em fevereiro do ano seguinte. No mesmo ano, Bergman filmou e lançou Chove sobre nosso Amor (1945), primeiro filme com o ator Gunnar Björnstrand, com quem faria 19 filmes no cinema e na televisão. Entre 1947 e 1950, foram lançados sete longas: Um Barco para a Índia (1947), Música na Noite (1948), Porto (1948), Prisão (1949), Sede de Paixões (1949), Rumo à Felicidade (1950) e Isso Aconteceria Aqui (1950).

Monika e o Desejo (1953)
Em 1951, devido a uma greve na indústria de cinema sueca, Bergman dirigiu comerciais para a marca de sabonetes Bris. O trio realizado na primeira metade da década de 1950 foi que trouxe o reconhecimento internacional a Bergman, então com 33 anos: Juventude (1951), Monika e o Desejo (1953) – concebido especialmente para Harriet Andersson, atriz com quem Bergman voltaria a trabalhar oito vezes - e Sorrisos de uma Noite de Amor (1955) – primeiro longa com Bibi Andersson, com quem realizou dez filmes. Entre eles, ainda foram realizados Quando as Mulheres Esperam (1952), Noites de Circo (1953), Uma Lição de Amor (1954) e Sonhos de Mulheres (1955). Na sequência, dois dos filmes mais importantes do cineasta foram lançados: O Sétimo Selo (1957) – primeira de treze parcerias com o ator Max von Sydow – e Morangos Silvestres (1957) – protagonizado por Victor Sjöström, um dos cineastas precursores do cinema sueco, e com Ingrid Thulin, atriz com quem faria mais sete filmes. Ambos os longas retratam os medos e anseios do cineasta na época: enquanto o primeiro apresenta seu medo da Morte – personificando-a em um personagem e questionando o papel de Deus -, o outro apresenta a conformidade da morte e o medo da vida, apresentando um protagonista idoso frustrado com a vida pessoal, amargurado e solitário. O final da década de 50 e início da década de 60, vieram No Limiar da Vida (1958), O Rosto (1958), A Fonte da Donzela (1960) e O Olho do Diabo (1960). Destacando-se o tema materno abordado no primeiro e a volta do tema religioso como poucas vezes visto em A Fonte da Donzela, dois filmes que, curiosamente, foram escritos pela roteirista Ulla Isaksson, única com quem Bergman trabalhou.

O Sétimo Selo (1957)
A década de 1960 continuou com importantes filmes do cineasta: Através de um Espelho (1961), Luz de Inverno (1936) e O Silêncio (1963) que, juntos, formam o que ficou conhecida como a Trilogia do Silêncio. O conjunto, segundo Mesquita (2006), “possui uma densidade considerável e um aprofundamento  nas questões existenciais. Aqui há a predominância da simplicidade”, são um conjuntos de filmes “desnudos de qualquer metáfora ou outras figuras de linguagem. São filmes diretos. As questões estão realisticamente presentes e não carecem de interpretações.” Questões como sexualidade, crenças religiosas, conflitos internos, medos, dúvidas que, antes, eram representadas por objetos, frases de efeito ou por personagens “reais” – tal qual a Morte em O Sétimo Selo. Na sequência, Bergman continuou seu abandono pela psiqué masculina, dedicando-se às mulheres em Para não Falar de Todas Essas Mulheres (1964) e Persona (1966). Este, tornou-se a obra mas cultuada da carreira do diretor, uma vez que, como apontou Azeredo, é um “filme inovador que já nasceu clássico – no qual o autor se distancia de suas anteriores preocupações metafísicas. É sua obra mais distante dos cânones do cinema narrativo, mais desafiadora pela complexidade formal e aberta a interpretações do espectador.” Persona é, portanto, um dos principais pontos de paradas no qual Bergman chegou no caminho que percorreu durante sua carreira. De uma forma ou outra, tudo apontou para a realização desse filme, o mais instigante de sua carreira. A década terminou com A Hora do Lobo (1968) – onde voltou aos questionamentos do homem sobre passado, presente e futuro -, Vergonha (1968) – relato de como o ser humano se comporta durante uma guerra - e A Paixão de Ana (1969) – sobre o relacionamento de um eremita que vive isolado e uma mulher casada. 

Persona (1966)
Fontes:
MANDELBAUM, Jacques. Ingmar Bergman – Masters of Cinema – Cahiers du Cinéma. 2ª ed. Phaidon, 2011.
CASTAÑEDA, Alessandra; LUCCAS, Giscard; ZACHARIAS, João Cândido (org.). Ingmar Bergman; 1ª ed. Rio de Janeiro: Jurubeba Produções, 2012.
ACHED, Jan. O Cinema Segundo Bergman. p. 72 – 77 Revista Bravo! Ano 6 Ed. D’Avilla, LTDA., 2002. 
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sábado, 25 de julho de 2015

OS SACRIFÍCIOS DE NINA SIMONE

What Happened, Nina Simone?, é um documentário simples e conciso que deixa de lado todo o resto e foca apenas na vida da cantora negra norte-americana, apresentando-a como uma mulher além de seu tempo, que sacrificou a vida por ela mesma, em busca da liberdade e da felicidade.



Eunice Waymon nasceu em 21 de fevereiro de 1933, em Tryon, Carolina do Norte, Estados Unidos. Era mulher, negra e pobre num país machista, segregado e extremamente capitalista. Sua mãe era pregadora em uma igreja e, aos 4 anos, Eunice começou a aprender a tocar piano. Pouco depois, teve a sorte de ser vista por uma professora branca de música que começou a lhe dar aulas. Sendo obrigada a ir na casa da professora, em um bairro branco, Eunice já provou do isolamento e de como a sociedade podia ser cruel. O sonho de sua professora, e o sonho de Eunice, era que ela se tornasse a primeira pianista profissional negra. Eunice, com a ajuda da professora, estudou e chegou a cursar um ano e meio na Julliard School. Ela tentou uma bolsa em uma universidade, mas foi recusada. A falta de dinheiro fez a jovem começar a tocar em um bar, mas o dono do local a advertiu: ou ela cantava também, ou perderia o emprego. Assim, nasceu Nina Simone (o Nina vinha do apelido dado por um namorado, niña – pequena em espanhol –, e o Simone, da atriz francesa Simone Signoret). A mudança de nome veio para que a família não descobrisse que Eunice estava tocando nos bares músicas não consideradas de Deus.

Nina Simone cantando I Loves You Porgy, em 1960

Nina Simone logo foi vista e poucos anos depois começou a ser ouvida em todas as rádios dos EUA graças a canção I Loves You Porgy. Logo depois, conheceu, se apaixonou e se casou com Andrew Stroud, policial que se tornou seu empresário. Apesar de tornar Nina uma estrela, Andy era abusivo e a espancava. Com ele, Nina teve sua única filha, Lisa. Com temperamento forte e opiniões muito próprias, a cantora trabalhava o tempo todo e começou a ficar estressada e muito agressiva. Na metade da década de 1964, Nina Simone escreveu e entoou Mississipi Goddam, música que denunciava o absurdo relacionado à segregação e era uma espécie de homenagem às crianças negras assassinadas dentro de uma igreja nos EUA. Nina, então, começou a se envolver e se entregar ao ativismo, que lutava pelos direitos civis, fazendo shows onde cantava músicas muito políticas e pedindo por atitudes mais agressivas. Após a morte de Martin Luther King, Nina cansou dos EUA e foi morar na África, deixando carreira, marido e filha para trás. Apesar de feliz, Nina se tornou mais agressiva e Lisa não aguentou morar com a mãe quando teve a chance. Quando o dinheiro acabou, tentou uma nova vida na Europa na década de 1970, quando foi diagnosticada com transtorno bipolar. Apesar da demora, em 1987, Nina estabilizou sua carreira novamente. Em 1993, gravou seu último disco e em 21 de abril de 2003, Nina Simone morreu em decorrência de um câncer de mama.


Com história de vida difícil para ser resumida, Nina Simone volta à mídia internacional devido ao documentário recém lançado pela Netflix, promissora empresa de streaming (um fluxo de mídia que permite a distribuição de dados através da rede mundial de computadores, a internet). What Happened, Nina Simone? é dirigido por Liz Garbus, conhecida por dirigir e produzir inúmeros filmes do gênero, e conta essa história fascinante dividindo a vida de Nina em pessoal e profissional, e apresentando-as de forma paralela, mas de formas muito distintas, misturando-as apenas quando necessário. Nina, entretanto, não parecia ser assim. A partir do momento em que Eunice Waymon se tornou Nina Simone, assumiu um papel só, no palco, ou em casa. Para apresentar a vida de Nina, Garbus utiliza de recursos muito comuns nesse tipo de filme: arquivos (vídeos, áudios, fotografias, manuscritos) de quando Nina estava viva e depoimentos de pessoas que conheceram a cantora mais de perto, tornando o longa muito intimista. O que impressiona é a quantidade de arquivos interessantes e bem conservados, desde entrevistas famosas até shows inesquecíveis.

Nina Simone cantando Mississipi Goddam
primeiro sucesso na luta dos direitos civis, em 1963

Para contar essa história, Garbus divide a vida de Nina fazendo uma pequena introdução até o começo de sua carreira como cantora (quando mudou de nome). Depois, conta tudo o que se passou na carreira de Nina durante dos dez anos inicias – apresentando sucessos como Destiny, Little Liza Jane, I Loves You Porgy, Where I Can go Without You, Love me our Leve meFeeling Good, I Put a Spell on You e sua apresentação no Carnegie Hall em 1963. Sobre a vida pessoal no período, a diretora revela, sobretudo, o relacionamento complicado com Andy e o nascimento da filha. Depois, vem o período em que Nina começou a se envolver com o ativismo, com músicas como Mississipi Goddam, Old Jim Crow, Work Song, Ain’t Got No, I Got Life, Strange Fruit, Four Woman, Why? (The King of the Love is Dead), To be Young, Grifted and Black – uma das músicas símbolo dos direitos civis – e sua defesa muito agressiva em relação aos brancos – Nina discordava da pacificidade do Dr. King, e acreditava que os negros deviam pegar em armas contra brancos. Nessa época, Nina se envolve tanto com o ativismo que deixa a família e a carreira de lado. Finalmente, Garbus reúne os períodos em que Nina morou na África e na Europa, provando que, apesar dos trancos e barrancos, Nina teve um final mais tranquilo.


What Happened, Nina Simone? Também tem alguns defeitos. Muitas coisas que poderiam ser ditas são deixadas de lado, justamente pela ânsia de se fazer um filme que fala sobre Nina, ou sobre a visão que Nina passou em suas entrevistas e que os amigos de Nina tinham da cantora. Um dos pontos mais negativos é a forma como o filme trata Andy, que dá vários depoimentos para o longa, mas sequer parece reconhecer arrependimento por ter espancado a mulher – provavelmente por que ele acredita que ela tenha gostado de ter sido espancada, como o filme chega a sugerir. A vida pessoal da atriz, nesse contexto, é muitas vezes deixada de lado e não se explora as dificuldades que a artista vivia dentro da própria casa. Ou dentro da própria cabeça. A fase em que Nina Simone começou a ser ativamente política não é retratada de forma concreta no filme, a impressão é de que a artista não sabia muito bem do que estava falando e o que estava fazendo. A posição de Nina de que os negros deviam pegar em armas não é relacionada ao envolvimento de Nina com os Panteras Negras, nem com nenhum outro grupo tão forte quanto. E a relação entre Nina e a política, a partir do momento que ela deixa os EUA, parece desaparecer, o que, de fato, não ocorreu, já que ela continuou participando da política na África.

 Nina Simone, em 1992, cantando 
I Put a Spell on You, sucesso de 1965

Todas as histórias imagináveis já foram contadas no cinema. O que difere um filme do outro, é a forma como a história será contada. Nessa verdade, incluem-se, inclusive, histórias de mulheres, negras, pobres e sofredoras. Mulheres abusadas por maridos e pela sociedade. Mas ainda não foram contadas histórias suficientes sobre elas para que a sociedade entenda como mulheres negras foram, e ainda são, subjugadas e sufocadas. Nina Simone possui uma história de vida fascinante. Uma história sobre uma mulher que não viveu na época errada, e sim, viveu além de seu tempo. Uma história que merece ser contada. A forma como ela é apresentada nessa deliciosa produção Netflix é simples, sem muito sensacionalismo e acompanha o que se passava na cabeça de Nina – ou pelo menos aquilo que se acreditava passar. O filme, é sobre a cantora e sobre a forma como ela parecia ver o mundo e como levava sua vida a partir daquilo que ela falava em suas entrevistas e do que os amigos e conhecidos alegam. Apesar da divisão que separa demasiadamente as vidas pessoal e profissional, a divisão feita por Garbus citada no parágrafo anterior, mostra tudo o que Nina vivia e a forma como ela via tudo à sua volta. Nada no documentário é sobre outras pessoas – nem mesmo quando o filme traz a época do ativismo, já que o que se mostra era a ação e influência de Nina (mesmo que, por vezes, superficial) e os reflexos da luta pelos direitos civis na vida da cantora. 

Nina Simone cantando To be YoungGrifted and Black –
 uma das músicas símbolo dos direitos civis - em 1970

A vida de Nina Simone, sem dúvida, era uma sequência interminável de sacrifícios. Enquanto vivia nos EUA, Nina sacrificava sua vida pessoal, seu relacionamento com Andy e sua relação com sua filha pela carreira. Quando o relacionamento com o marido se tornou abusivo e inaceitável, passou a sacrificar sua própria integridade física e psíquica por um amor inexplicável. Ao se tornar uma ativista, Nina sacrificou sua própria carreira ao cantar sucessos políticos que não eram aceitos em grandes shows. Quando resolveu mudar para a África, sacrificou a convivência com amigos e com a filha e, novamente, a carreira para tentar se encontrar e, consequentemente, finalmente ser feliz. Ao retomar sua carreira na Europa, sacrificou e arriscou sua saúde quando começou a tomar remédios para controlar sua bipolaridade, que podiam comprometer seus movimentos e reflexos. E se a pergunta que fica é “o que aconteceu, Nina Simone?”, como sugere o título do filme, a cantora responderia que o que aconteceu foi ter vivido livremente, verdadeiramente. Ou, simplesmente riria e não responderia nada, por que Nina não seria obrigada a responder a qualquer pergunta. Infelizmente, Nina não está mais aqui para amarrar as inúmeras pontas soltas de sua vida.



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sexta-feira, 24 de julho de 2015

ENTREVISTA: ELZA SOARES, a Mulher que pode ser tudo ou nada


Personificação de diversas minorias – nasceu mulher, negra e pobre –, Elza Soares, de 77 anos, precisou dar chutes nas portas para conquistar o sucesso e o respeito que almejava. Passou fome na infância, sofreu com o moralismo da sociedade por causa do relacionamento com Mané Garrincha (que era casado quando conheceu a cantora), enfrentou os problemas de alcoolismo do jogador e viveu a traumática experiência da perda do filho do casal em um acidente de carro, anos depois da morte do companheiro. Sempre se recuperando como uma fênix, Elza segue bem-humorada e fazendo uma média de 15 shows por mês, que tem realizado sentada por causa de problemas na coluna. Entre as apresentações está o espetáculo Elza Soares Canta e Chora Lupicínio Rodrigues, que ganhará registro ao vivo. O atual momento da cantora ainda é tema de My Name Is Now, filme com recortes musicais que mistura ficção e documentário, dirigido por Elizabete Martins Campos. Elogiado, o longa estreou no Festival do Rio e busca parceiros para ser exibido em circuito comercial. “Quando me assisti, pensei: ‘Porra, que mulher foda’”, ela diz, sem falsa modéstia.

Elza Soares canta Vingança, 
uma das músicas do show Elza canta e chora Lupicínio  

Rolling Stone: Como surgiu a ideia de fazer um filme como esse?
Elza Soares: Conheço a Bebete há um tempo e comentei que gostaria de escrever um livro sobre mim. Ela me sugeriu fazer um longa-metragem. É um filme em que falo da Elza de agora, não tanto da Elza das porradas da vida.

RS: E por que não quis abordar de forma mais contundente os perrengues pelos quais você passou?
ES: Falamos disso no filme também, mas queria algo mais leve. Ao longo da minha carreira sempre consegui tudo na porrada, porque sou abusada. Até hoje falo que nunca tive um grande patrocinador. Mas também é aquela coisa, talvez com um patrocinador eu não pudesse ser o que sou.

RS: Acha que teria tido mais aceitação do público não fosse o relacionamento com Garrincha?
ES: Sim. E se eu tivesse sido como queriam que eu fosse, uma donzelinha frágil com vestido até a canela e gola no pescoço. Meu vestido só não sobe mais por causa das calcinhas [risos]. Era uma época em que se tinha uma ideia da mulher submissa, que muitas vezes era depósito para lixo de alguns homens. Nunca quis isso e sofri também. Ser livre, naquela época, foi difícil. E se minha história com Mané se passasse agora, com os jogadores ganhando milhões, não sei se eu seria a mulher dele. Conheci um Garrincha pobre e nosso amor era verdadeiro. O que sinto por ele permanece intacto.

RS: Essa intensidade que você tem claramente vai além do cantar.
ES: Sempre me pergunto: “Será, meu Deus, que quem nasce com esse coração é quem tem que morrer crucificado?” Porque o ser humano vive muito mais com a razão do que com a emoção. Eu não nasci com a razão e pago um preço muito caro. E o Mané também era assim.

RS: Não à toa você tem esse laço tão forte com as canções do Lupicínio.
ES: Acho que é por isso que o show deu tão certo. Elza canta e chora Lupicínio. Entra pelo meu útero, me engravida e cada música cantada é um parto. Gravamos um registro audiovisual ao vivo em Porto Alegre, terra de Lupi. Convidei o filho dele, Lupicínio Rodrigues Filho, e o lançamento será no início de 2015.

RS: Você era moderna em uma época de grande conservadorismo. Acha que é mais fácil ser mulher hoje?
ES: As mulheres tinham muito medo de mim. Quando eu chegava numa festa era uma coisa de “cuidado com a Elza”. Hoje em dia elas conseguem se impor muito mais. Mas ainda há preconceito, e não só vindo do homem. Muitas mulheres são machistas sem perceber.

RS: A representação feminina no Congresso, por exemplo, ainda é muito pequena.
ES: As mulheres não se apoiam. Falta mulher na política. Eu tenho tanta vontade de vê-las de mãos dadas, se ajudando. E minha luta, além de ser pelos negros e pelas mulheres, sempre foi pelos gays. Alguns tratam os homossexuais como se não fossem um pedaço de nós. Eu sou todos eles.

RS: E como está a sua coluna?
ES: Ando fazendo muita fisioterapia. Caí do palco em 1999 e nem dei muita bola. Segui usando meus saltos de 15 centímetros. De 2007 para cá, fiz três cirurgias e tenho oito pinos na coluna. Sempre sambei no palco. Hoje, me apresento sentada, mas aprendi a dar uma tremidinha na cadeira [risos]. Espero que em 2015 eu já volte a fazer shows em pé. Acredito que com a minha vontade e entrega vai dar tudo certo.

*Entrevista concedida Patrícia Colombo da revista Rolling Stones em dezembro de 2014, na edição 100  (http://rollingstone.uol.com.br/edicao/edicao-100/entrevista-elza-soares)

Para saber mais sobre Elza Soares, confira o especial ENSAIO sobre Elza Soares gravado em 14/09/2014 pela TV Cultura:


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quinta-feira, 23 de julho de 2015

A PRESENÇA DA MULHER NEGRA NO CINEMA

Quando fui convidada a escrever sobre a presença das mulheres negras no cinema, automaticamente me veio uma pergunta à cabeça: existem mulheres negras atrás das câmeras? A primeira resposta que me surgiu foi uma negativa: não, não existem. Senti aí um desafio pessoal, pois das duas uma: ou eu tenho muito o que aprender sobre cinema e a presença de negros (e mulheres!) ou essa segregação existe mesmo e não há como negar. Para meu espanto, as duas coisas são verídicas e aqui fica meu empenho - e desejo - para que elas mudem (e já!).
Mas como escrever sobre as negras no cinema se não consigo encontrar uma referência - e representatividade - atrás das câmeras? O que me resta é ir para a frente delas e falar sobre duas mulheres negras pioneiras no cinema: a norte-americana (ou afro-americana) Hattie MacDaniel e a brasileira Ruth de Souza. Lembrando que o 25 de julho celebra o dia da mulher afro-latino-americana e caribenha, mas como acredito que uma coisa leva à outra e a história dessas duas mulheres se assemelham muito resolvi utilizar Hattie MacDaniel mesmo assim.
A atriz americana Hattiel MacDaniel
Provavelmente o nome de MacDaniel não seja tão lembrado como deveria, ao contrário do nome de outros atores do filme mais expressivo de sua carreira: ...E o Vento Levou (1939). No papel de "Mammy" a atriz foi a primeira negra a ganhar um Oscar (como atriz coadjuvante) e a primeira negra convidada a participar da cerimônia (os demais negros participavam como empregados, faxineiros etc). Talvez hoje em dia isso pareça um absurdo ou algo superado mas, vale lembrar que, depois dela somente 6 atrizes – Whoopi Goldberg por Ghost: Do Outro Lado da Vida (1990), Halle Berry por A Última Ceia (2001), Jennifer Hudson por Dreamgirls: Em Busca de um Sonho (2006), Mo’Nique por Preciosa: Uma História de Esperança (2009), Octavia Spencer por Histórias Cruzadas (2011) e Lupita Nyong’o por 12 Anos de Escravidão (2013) - ganharam prêmios da Academia e, a primeira foi somente em 1990, passados 50 anos da premiação de Hattie.
Apesar de se destacar em outras produções, Hattie foi muito criticada pela própria comunidade negra ao aceitar fazer sempre o mesmo tipo de papel, a empregada desbocada e extrovertida. Em uma entrevista ela chegou a declarar: "Por que devo reclamar enquanto ganho 700 dólares por semana sendo uma empregada nas telas? Se não fosse uma nas telas, ganharia sete dólares por semana sendo uma de verdade." É exatamente aí que a ficção se mistura com a realidade, pois quando ela não conseguia papel em filmes tinha de trabalhar como empregada ou cozinheira para se manter.
Interessante notar como no Brasil a figura da “Mammy” foi retratada pelo escritor Monteiro Lobato (entre 1920 e 1940 com a série de livros Sítio do Pica Pau Amarelo) e a sua “Tia Nastácia”: uma mulher negra que trabalha em uma casa de família rica, com pouca instrução, solteira e sempre solícita.  Demonstrando claramente resquícios dos tempos da escravatura, onde algumas escravas negras trabalhavam como empregadas e/ou amas de leite dos filhos de seus patrões. No filme ... E o Vento Levou, a personagem de Hattie é uma mistura de tudo isso, salvo o fato de retratar o tempo da Guerra Civil Americana e a condição de escrava da personagem.
Hattie foi a primeira negra a cantar no rádio (em 1915), seu pai e seus avós foram escravos e, apesar das críticas recebidas durante sua carreira, ela acreditava que não trabalhava para si mesma, mas para as futuras gerações de atores afro-americanos. Ela foi referência nos discursos de George Clooney e Mo’Nique quando estes receberam o Oscar.
Atriz brasileira Ruth de Souza
Já a brasileira Ruth de Souza, com cerca de 70 anos de carreira, ajudou a fundar o TEN (Teatro Experimental do Negro), grupo pioneiro na participação dos negros nas artes cênicas brasileiras. Sendo indicada anos mais tarde ao prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza pelo filme Sinhá Moça (1953) e tendo trabalhado na Atlântida e na Vera Cruz. Ruth ganhou uma bolsa de estudos para estudar teatro na Universidade de Harvard (em Washington) e na Academia Nacional do Teatro Americano (em Nova York). Estreou no cinema em 1948, no filme Terra Violenta e depois não parou mais de atuar no cinema, TV e teatro. Foi a primeira atriz negra a protagonizar uma novela - A Cabana do Pai Tomás (1969/70) - na TV Globo, apesar das críticas que recebeu (o seu par romântico era um ator branco que se pintava de negro) Ruth ainda integra o elenco da emissora e marca presença em obras de cineastas como Walter Salles, Aluísio Abranches e Zito Araújo.
Ruth foi a primeira atriz negra a se apresentar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro (1945), fez mais de 40 novelas, cerca de 33 filmes e dezenas de peças. Afirmou certa vez que todos riram quando ela, ainda jovem, decidiu ser atriz. Foi sua persistência que a permitiu abrir as portas para os artistas negros. Diz não ter sofrido preconceito, mas afirma que a dramaturgia brasileira precisa ter mais respeito aos negros.
Essas duas mulheres com o seu pioneirismo no cinema (e no audiovisual como um todo) são uma pequena amostra de como a participação das mulheres negras no cinema tem que se ampliar cada vez mais e mais. Hattie e Ruth são exemplos de como o talento pode superar o racismo, ambas insistiram e acreditaram na sua arte e conquistaram um lugar que lhes é de direito. Apesar de não serem lembradas frequentemente devem ser exemplos para uma mudança necessária e urgente no cinema brasileiro e internacional: o protagonismo da mulher negra nas produções. Em frente, e atrás das câmeras.
É desanimador pensar que - mais especificamente no Brasil - uma parte expressiva da população vem sendo minimamente representada e, em sua grande maioria, em papéis estereotipados e secundários, como: a empregada, a mulata gostosa ou a moradora de "comunidade".  E para piorar a situação, segundo pesquisa da Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa) as roteiristas e diretoras negras brasileiras praticamente não existem. Talvez isto explique a continuidade desses estereótipos e possa servir como alerta para que a mulher negra conquiste seu espaço escrevendo, atuando e dirigindo a si mesma e em seu espaço.
Um passo importante - e que celebra o 25 de julho - foi dado pelo Festival da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha. Na edição deste ano será discutido o cinema negro e serão exibidos curtas e longas metragens com a mesma temática. É uma gota no oceano, mas ela há de se multiplicar cada vez mais.

Referências:
http://www.afrolatinas.com.br/
http://gemaa.iesp.uerj.br/
http://www.imdb.com/
http://www.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes/acervo/atores-do-brasil/biografia-de-ruth-de-souza/
http://www.ebc.com.br/cultura/2014/07/pesquisa-revela-que-mulheres-negras-estao-fora-do-cinema-nacional

Danny Evans é estudante de Cinema e Audiovisual na UFF/RJ, negra e periférica. Paulistana do Grajaú, apaixonada por Chaves e filmes de gângsteres. Não dispensa um churrasco e uma cerveja gelada, mas sabe que isso não é tudo na vida.

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