quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Resistir ao esquecimento

Performance de Fabiana Lima durante a sessão de abertura do VIII CachoeiraDoc
Foto: Állan Maia
A noite de abertura do VIII CachoeiraDoc, o Festival de Documentários de Cachoeira, dimensionou o quão incendiária pretende ser esta edição, que parece se identificar com uma resistência a esse governo pós-golpe e ao sistema capitalista pós-moderno que garante que os homens brancos, ricos, cis-gênero, heterossexuais ocupem os cargos políticos mais importantes do país e instalem um sistema opressor e castrador.
O filme de abertura, Quilombo Rio dos Macacos, de Josias Pires, pertence a uma das Mostras Especiais Cinemas em Lutas, conjunto de filmes que, segundo Amaranta Cesar, idealizadora, coordenadora artística e acadêmica e uma das curadoras das Mostras Especiais e da Mostra Competitiva, “dão formas cinematográficas aos movimentos de emancipação e demandas por justiça de diversos grupos sociais”. São, ainda segundo ela, “filmes de intervenção social engajados e militantes”.
O longa-metragem baiano já é um retrato bastante claro de filmes que atenderão, nos próximos dias, a essa característica incendiária de levantar questões caras às minorias sociais (pobres, negros, índios, mulheres, minorias sexuais e periféricos) e que devem ser debatidas de alguma forma. Quilombo Rio dos Macacos conta, justamente, a história da comunidade homônima ao título do filme que, desde 2011 vem tentando rever seu espaço de direito junto ao Estado (Estadual e Federal), travando uma luta interminável com a Marinha do Brasil, que insiste em ocupar terras legalmente pertencentes àquela comunidade há mais de duzentos anos.
Localizada entre os municípios de Salvador e Simões Filho, a comunidade abriga centenas de pessoas que moram em pequenas casas – sua maioria de pau à pique – onde vivem até 16 moradores. A equipe de Josias acompanhou as lutas desses habitantes durante os últimos anos e registrou diversas imagens. No filme, são retomadas matérias de telejornais e da internet, movimentos como o “SomosTodosQuilomboRioDosMacacos” – aderido nas redes sociais por diversos apoiadores da causa, incluindo artistas como Gilberto Gil e Emicida -, assembleias realizadas entre os anos de 2011 e 2014 junto aos poderes estaduais, na Bahia, e aos poderes federais, em Brasília. Além disso, imagens do cotidiano dos moradores e moradoras do Quilombo, entrevistas, discussões sobre as propostas dos governos, identificação das terras pertencentes àquela gente. A montagem se utiliza de um fio condutor – a batalha pelas terras de direito – e traz imagens que ilustram essa luta difícil e diária – como as investidas de desapropriação e as constatações, em assembleias, de que combinados não estavam sendo cumpridos pelos militares.
Batalha travada por corpos. Corpos femininos e masculinos, corpos de crianças e adultos, corpos de netas, filhas, mães, avós e bisavós que cravaram seus pés nessas terras desde antes da implementação da República Federativa do Brasil, quando a escravidão ainda era permitida em terras brasileiras. Corpos que ali estão e ali permanecerão. Corpos que exigem seus direitos, e não apenas às terras que já ocupam, ao direto de ir e vir naquelas terras, mas a condições básicas de sobrevivência: água potável, saneamento básico, saúde, educação, moradia e trabalho. Corpos que não permitirão que a Base Naval de Aratu os expulse sem resistir. E é disso que se trata este documentário. Fala de luta, de solidariedade, de organização, de mobilização, de direitos humanos. Mas fala, sobretudo, de resistir. Resistir, como afirmou Zia Zhangke, para não ser esquecido.
O VIII CachoeiraDoc firma, com este filme de abertura, um compromisso grande e importante: apresentar filmes que se propõe a discutir temas perigosos, mas necessários e que afetam, mais do que nunca, a vida de cada cidadã e cidadão desse Brasil caótico. Nesse contexto, cabe uma reflexão sobre o que tem sido feito com esses files urgentes, de intervenção e que se propõe a fazer emergir discussões que podem cair no esquecimento em um momento político tão sério. De que forma esses filmes tem sido trabalhados em prol daqueles e daquelas – seres humanos e movimentos – que se fala? Para quem e como esses filmes têm sido distribuídos? Quem tem apreciado e discutido esses produtos? O que nós, realizadores(as), pesquisadores(as), críticos(as), apreciadores(as), cinéfilos(as), cineclubistas, educadores(as), temos feito para que esses filmes agitem não somente a nós mesmos, mas a cidadãs e cidadãos que precisam de um choque de realidade bruto para saírem de sua zona de conforto e reconhecerem de uma vez por todas que a intolerância e a opressão já não podem mais ter espaço, ou cidadãs e cidadãos que precisam apenas de um impulso externo mínimo para pegar nas armas que estão ao seu alcance e lutar?

Lutar e Resistir!

Registro de um show do cantor Emicida

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

A RESISTÊNCIA EM DOCUMENTAR

Nos últimos anos, o documentário, tipo de filme que se difere da ficção por, de alguma forma retratar a realidade, tem passado pelo benefício da dúvida em relação a uma definição que o caracterize homogeneamente. Os primeiros filmes da história do cinema, exibidos elos irmãos Lumiére, já mostravam a realidade da vida francesa sem grandes narrativas. Curtas-metragem realizados para experimentar a câmera. Desde que o precursor deste tipo de obra em longa-metragem, Nanook, of the North (Robert Flaherty, 1922), foi lançado e mudou a história do cinema documentário justamente por ser um longa-metragem, a forma de se ver e se fazer o documentário mudou.
Passando por outros importantes filmes do passado, que compreendem o início da exploração do documentário, como: Nada além das horas (Alberto Cavalcanti, 1926) Berlim – Sinfonia da metrópole (Walter Ruttmann, 1927), O homem com a câmera (Dziga Vertov, 1929), Drifters (John Grierson, 1929), O homem de Aran (Robert Flaherty, 1934); e fazendo uma breve análise de alguns filmes apresentados no CachoeiraDoc – VII Festival de Documentário de Cachoeira, em 2016, é fácil constatar que modificações ocorreram ao longo do último século para que os documentários adaptassem-se a novas exigências, a novos dispositivos, a novas realidades. Na década de 1930, a ucraniana Esfir Chub idealizou o subgênero “filme de compilação” ou “documentário de arquivo”; daí por diante, outros termos vieram para definir os diferentes tipos de documentários: “documentário experimental”, “cinema verdade”, “documentário-ensaio”, “cinema direto”, “documentário militante”, “cinema de conversa”, “filmes híbridos”, “documentário digital”, “documentário social”, “documentarismo político”, “documentário televisivo”.

Nanook, of the North (Robert Flaherty, 1922)
Cada um desses subgêneros do documentário, adaptou-se para realizar obras fílmicas que atendessem às necessidades impostas pela temática, pelo contexto histórico-social, pelas condições financeiras, pelos conceitos estéticos, pelos ideais do realizador, etc, etc, etc. Entretanto, ainda é válido questionar-se o que é o documentário, quais são suas características fundamentais e qual seu papel social e artístico. Durante o CachoeiraDoc, levantou-se outra questão pertinente: por que escolher o documentário? Para pensar sobre essas questões, além de assistir a alguns filmes no festival, procurei a opinião de cineastas e pesquisadores que já publicaram artigos onde se expõe, de uma forma ou outra, impressões sobre o documentário.
Robert Flaherty, em Como filmei Nanook, o esquimó (texto de 1922 publicado originalmente em World’s Work), e Marina Goldovskaia, em A jornada do documentário (texto de 2006, publicado originalmente como Documentary trip, em Woman with a moving camera) expõe o processo de pré-produção e produção de seus filmes. Dessa forma, podemos verificar o modos operandi que prevalece na realização de um documentário, diferenciando-o da ficção, desde o processo de realização. Antes das filmagens, afim de estabelecer um tema central e seus limites, é de bom tom que seja realizada uma pesquisa prévia, tempo hábil, também, para que as mudanças sejam realizadas na temática e nos conceitos estéticos. Geralmente, não se filma um documentário com algum roteiro prévio, apenas com indicações do que se quer mostrar. O realizador, na hora das filmagens, deve estar disposto a se render a imprevistos, compreendendo que no formato de documentário é que se tem menos controle do que se filma. Goldovskaia ainda relata o processo de montagem, onde o material filmado é revisado, assimilado e selecionado, onde horas e mais horas se tornam um produto de poucos minutos. Depois, o filme vai se moldando e é finalizado.

O homem com a câmera (Dziga Vertov, 1929)
Goldovskaia apresenta duas frases em seu texto que merecem atenção. A primeira diz respeito a sua forma de escolher um tema e de filmá-lo: “... todo filme começa com sensações”. Para ela, é o que se sente pelo tema, a forma e o que o tema toca em cada realizador que ditará como o documentário será realizado. Ela chega a dizer que só começa a filmar algo quando é tocada pela temática e se sente plenamente confortável para realizar seu filme. Isso leva a refletir, também, sobre quem está fazendo documentários, qual o perfil de quem realiza um documentário atualmente. Durante a primeira sessão de filmes na competitiva nacional do CachoeiraDoc, por exemplo, apostou-se em filmes realizados por indivíduos que vivenciam ou vivenciaram as realidades apresentadas. De alguma forma, os realizadores resolveram fazer aqueles filmes pelo fato de reconhecerem a necessidade de expor fatos. Onze (Coletivo Nigéria, Coletivo Zóio e Voz e Vez das Comunidades, 2016), Sepulcro do gato preto (Kaneda Asfixia e Frederico Moreira, 2015) e Voz das mulheres indígenas (Glicéria Tupinambá e Cristiane Pankararu, 2015) são realizados por moradores e frequentadores dos lugares, das histórias, das realidades apresentadas; Quem matou Eloá? (Lívia Perez, 2015) é de autoria de uma mulher que, mesmo não tendo vivenciado diretamente o que aconteceu a Eloá, assistiu a tudo aquilo e sofre com o machismo e a misoginia diariamente. A outra frese é “A câmera me emancipou”, que pode ser entendida, também, como os benefícios da evolução tecnológica que possibilitam que indivíduos quaisquer realizem cinema, como aconteceu com Glicéria Tupinambá, que filmou seu documentário de forma despretensiosa e sem grandes planejamentos ou aparatos tecnológicos, mas que o fez, justamente, por estar cada vez mais fácil o acesso a dispositivos de filmagem.

Sepulcro do gato preto (Kaneda Asfixia e Frederico Moreira, 2015)
 Outro exemplo é John Grierson, que define o documentário como um filme que usa “material natural”, podendo ele ter uma história contada “por si mesma”, ou induzida, planejada pelo realizador do filme. Sobre este “material natural”, será aplicada uma montagem, onde, independente da forma como o realizador trabalhará este processo, será criada uma interpretação acerca do tema explorado, como também é feito na ficção. É interessante observar, nesse contexto, os diversos tipos de “material natural” e a possibilidade de inserção de outros materiais, além, claro, do que a montagem dirá sobre o tema. Em Obra autorizada (Iago Ribeiro, 2016), por exemplo, as imagens e sons reais misturam-se a prováveis discursos previamente pensados, escritos e narrados por indivíduos. O realizador não induz o prédio a cair, não induz a prefeitura à negligência, não induz os personagens a estarem ali. Mas usa de um discurso não natural para justificar a preocupação com o prédio (é patrimônio material), influencia os transeuntes a passar por aquela rua ou não. Na montagem, escolhe apresentar o prédio, explica o que está acontecendo, interage com os personagens; salienta a importância da conservação dos patrimônios; metaforicamente, usa-os para falar de uma situação social atual muito mais complexa, forma uma opinião. Instiga o espectador de alguma forma.
Outro realizador/autor observado é o brasileiro Alberto Cavalcanti, que lançou uma nota aos jovens cineastas, onde atenta para os aspectos fílmicos (social, poético e ético), seguido de uma lista de conselhos que perpassam pela economia de conteúdo, foco no tema, justificativas de decupagem e de montagem, economia na intervenção musical, reconhecimento do ser humano como personagem em potencial e, o principal deles, experimentação, pois é dela que se cria e se vive o documentário. Sobre os aspectos fílmicos citados por Cavalcanti, é interessante observar o filme Ninguém nasce no paraíso (Alan Schvarsberg, 2015), onde é relatada a vida das mulheres grávidas que são obrigadas a deixar a ilha de Fernando de Noronha para parir no continente, sem nenhum auxílio além das passagens aéreas. No curta-metragem, o realizador expõe, critica, denuncia um fato social desconhecido da maioria e que precisa ser debatido. A forma como o realizador decide mostrar isso pelos olhos de quem sofre, as mães, mulheres grávidas, é sua forma de dar voz a cidadãs nunca ouvidas. A poesia fica a cargo da montagem, na forma como explora o discurso de cada mulher.

Obra autorizada (Iago Ribeiro, 2016)
Finalmente, em um dos textos mais interessantes do livro, A verdade de cada um (Amir Labaki, org., 2015), Jia Zhangke faz uma dedicatória onde expõe sua opinião sobre o documentário de forma simples, sucinta e honesta. O realizador chinês atenta para o fato de se observar pessoas para se fazer um filme, questionando-se sobre as diferenças e semelhanças entre quem observa e que é observado: serão o quarto, a alimentação, os objetos, as famílias, as relações de quem se observa semelhantes ou diferentes de quem é observado? O documentário, nesse contexto, nasce da curiosidade pelo outro, da proximidade ou distanciamento com o outro. Traz de volta o senso de justiça e coragem, Através do documentário, por fim, alarga-se o universo, rompe-se com a solidão, preserva-se a memória das coisas, conserva-se aquilo que se passou, resiste-se ao esquecimento.

Em comum, todos os autores/cineastas falam sobre a realidade, sobre o natural, sobre captar imagens que sejam reais. Claramente, já não é um objetivo do documentário apresentar situações totalmente reais. Nunca foi. Em Nanook, a interpretação já era vista. Em frente a câmera, também, o ser humano muda. Além disso, os planos escolhidos, a montagem, a música, tudo unido faz do documentário quase um filme de ficção. Mas que parece real de alguma forma. Em comum a muitos autores, está a opinião de que definir o que é documentário é quase impossível. Provável é cair numa bola de neve na tentativa de encontrar as características que definam um documentário e não parar de rolar nunca mais. O que Zhangke diz, parece ser mais interessante: resistir. Documentar para resistir ao passado, ao presente e ao futuro. Resistir às convenções. Resistir à corrupção. Resistir às tentações mundanas que nos afastam do que é justo. Resistir é coragem. É também, a palavra chave do VII CachoeiraDoc, onde se deu voz a mulheres, a minorias sociais, a indivíduos que lutam contra a repressão, contra o sistema caótico em que o ser humano vive. Resistir para realizar, para falar, para gritar, para informar, para existir.

Um gosto de liberdade (Marina Goldovskaia, 1991)
Outubro, 2016 

domingo, 28 de fevereiro de 2016

VENCEDORES OSCAR 2016

Com o longa Spotlight: segredos revelados vencendo o prêmio principal da noite e o filme Mad Max saindo com o maior número de prêmios da edição, o Oscar 2016 consagrou o ator Leonardo DiCaprio finalmente recebeu seu prêmio de melhor ator após cinco indicações.



Abaixo, confira a lista dos vencedores da 88ª premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, o Oscar 2016:
Melhor filme: Spotilight
Melhor diretor: Alejandre Gonzales Iñárritu, por O Regresso
Melhor ator: Leonardo Di Caprio, por O regresso
Melhor atriz: Brie Larson, por O quarto de Jack
Melhor atriz coadjuvante: Alicia Vikander, por A Garota Dinamarquesa
Melhor ator coadjuvante: Mark Rylance, por Ponte dos espiões
Melhor animação: Divertidamente
Melhor filme estrangeiro: Filho de Saul
Melhor trilha sonora: Ennio Morricone, por Os 8 odiados
Melhor canção original: Writng’s on the wall, de Jimmy Napes e Sam Smith, pelo filme 007 contra Spectre
Melhor roteiro adaptado: Charles Randolph e Adam McKAy, por A grande aposta
Melhor roteiro original: Josh Singr e Tom McCarthy, por Spotlight
Melhor design de produção: Colin Gibson e Lisa Thompson, por Mad Max
Melhor fotografia: Emmanuel Lubezki, por O Regresso
Melhor figurino: Jenny Beavan, por Mad Max
Melhores efeitos visuais: Andrew Whitehurst, Paul Norris, Mark Ardington e Sara Bennett, por Ex Machina
Melhor montagem: Margaret Sixel, por Mad Max
Melhor edição de som: Mark Mangini e David White, por Mad Max
Melhor mixagem de som: Chris Jenkins, Gregg Rudloff e Bem Osmo, por Mad Max
Melhor curta de animação: Bear Story
Melhor curta de live action: Stutterer
Melhor cabelo e maquiagem: Lesley Vanderwalt, Elka Wardega e Damian Martin, por Mad Max
Melhor documentário: Amy
Melhor documentário de curta-metragem: A girl in the river: the price of forgiveness

COBERTURA XI PANORAMA INTERNACIONAL COISA DE CINEMA

A primeira sessão do domingo (01) do XI Panorama Internacional Coisa de Cinema explora a realidade vivida pelos negros no Brasil e pelos negros refugiados na Alemanha e, sutilmente, aponta um dos grandes culpados pelos problemas sociais mundiais: a político.


Ogum era irmão de Oxossi. Foi Ogum quem ensinou o irmão mais novo a importância de se pensar no próximo, foi quem o ensinou a arte da caça. Quando seus ensinamentos foram aprendidos, Ogum voltou à guerra. Oxóssi ficou. Oxóssi passou a tomar conta das matas e de seu povo. A negritude se mistura ao misticismo da cultura de origem africana que se originou no Brasil. A violência contra o negro e a intolerância religiosa, a segregação social e o preconceito de classes, o opressor e o oprimido. Tudo é exposto, discutido, excrachado em Rapsódia para o homem negro, curta-metragem de Gabriel Martins. Com narrativa não linear e que aposta na metáfora, no real (com planos longos, alguns monólogos que lembram depoimentos e outras características documentais) e no lúdico, o filme explora todas essas importantes questões de forma clara e inteligente. Um filme essencial para as discussões sociais atuais.
Os refugiados africanos na Europa ganham espaço em Fuja dos meus olhos, de Felipe Bragança, curta onde os problemas, dúvidas e anseios dos negros exilados de seus países são exploradas de forma semelhante ao longa anterior: através de metáforas e cenas que alternam entre o realismo puro (nesse caso, mais documental que o anterior) e o lúdico (aqui, muito mais fantástico que no outro). Permanecem, também, metáforas que tornam o filme universal. Não é um filme sobre refugiados africanos na Europa, e sim um filme sobre refugiados de qualquer país enfrentando tristes verdades em qualquer lugar do mundo. Aqui, entretanto, a história ficcional romântica entre um refugiado e uma alemã corta o ritmo do filme, tornando-o cansativo e aparentando que a narrativa perde o fio condutor.
Um homem que governa uma cidade no meio de escombros. Imagens cruas, algumas com poucas informações além de pedras e cabos de metal. Sonoridade lúdica e inúmeros momentos onde os diálogos são suprimidos por uma voz off que quase cansa o espectador. O prefeito, de Bruno Safadi, é um filme incomum, que critica e debocha sobre os políticos corruptos e megalomaníacos de forma intrigante. Realizado em em curto espaço de tempo, o filme opta por uma alegoria mais simples: quase todo ele se passa no local onde o protagonista trabalha como prefeito: no meio da rua, em meio aos escombros do que, antes, fora uma Rio de Janeiro visitada por turistas. Não há cartão postal (e mesmo os cartões postais da cidade maravilhosa são transformados em pedras em uma maquete que o prefeito tem em sua “sala”). Outra característica escolhida devido ao pouco tempo para a realização do longa foi a utilização de fotografias, como em stop motin, e as falas em off, que toma conta do longa. Apesar de segurar as pontas com essas novidades, o filme tem problemas que incomodam muito.
O estopim para que o prefeito decida que tornará o estado do Rio de Janeiro um país independente do Brasil se dá com a visita de uma mulher. Ela se define como Lilith, Cleopátra ou qualquer outra figura feminina histórica que tenha causado algum caos para o sexo oposto. Ela traz, consigo, um cristal, uma substancia alucinógena. E aí está o primeiro tropeço do longa: o Brasil enfrenta um grave problema em relação ao uso de crack em diversas regiões, e o que se faz no filme é usar um cristal metafórico para criar humor e debochar ainda mais dos políticos. Mais real, e cômico, seria, se Lilith aparecesse com um helicóptero cheio de cocaína. O outro sério ponto negativo do filme é o ritmo construído ao longo da narrativa. Com cenas interessantes e algumas ironias bastante uteis nas denúncias da politicagem no Brasil, o produto oscila entre o ritmo instigante e o entediante.
A sessão do domingo à tarde apresentou o melhor filme do XI Panorama Internacional Coisa de Cinema: Rapsódia para o homem negro, um filme sobre identidade cultural e racial, sobre o orgulho pertencer a lugares sociais e religiosos onde não se tem muita fala, mas também sobre a busca pela igualdade. Um filme que, mesmo em um curto espaço de tempo, abarca a situação negra no Brasil, um país que gosta de abrir a boca para falar sobre sua diversidade, mas que não a aceita de forma alguma. O curta-metragem possui uma força inspiradora e se faz essencial nas discussões da situação humana no Brasil. De resto, filme interessantes, mas que morrem na praia.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

COBERTURA XI PANORAMA INTERNACIONAL COISA DE CINEMA

 A segunda sessão do dia de sábado (31) do XI Panorama Internacional Coisa de Cinema teve o documentário como foco. Três produtos bastante diferentes entre si em temáticas e formas de abordagem, os filmes da sessão tinham por grande objetivo homenagear o cineasta Mário Peixoto e a cultura baiana e alertar para os problemas da seca no Nordeste do Brasil.




Uma boca cospe. Em escombros do que antes fora um prédio, uma mulher negra movimenta-se em uma performance hipnotizante antes de atacar a câmera fixa. Logo nos primeiros planos, Ifá, de Leonardo França, conquista o espectador pela fotografia e as cores. Os planos são intimistas, fazem o espectador refletir e acompanhar os movimentos da boca e de todo o corpo da mulher de forma poética. A saturação do filme salta aos olhos e chama a atenção para a imagem mostrada. Entretanto, durante os vinte minutos do filme, ele perde força e parece não saber que direção tomar. A mulher e sua poesia se misturam a uma conversa com um pai de santo e a uma contação muito didática de uma história de Orixás. Enquanto o homem fala, as imagens retratam exatamente o que o homem diz, não há ousadia no que se mostra, não há alegoria metafórica alguma e as planos acabam sendo forçados demais.


Mario Peixoto foi roteirista e diretor de um dos maiores e mais enigmáticos filmes da história do cinema brasileiro: Limite. Seu único longa-metragem. O curta Mar de Fogo homenageia o mestre e sua obra em nove minutos. A proposta de homenagear Peixoto e seu filme é, sem dúvidas, louvável, entretanto, a impressão é a de que o diretor Joel Pizzini aproveitou a onda que trouxe Limite à boca do povo europeu e americano quando Martin Scorsese restaurou o longa e resolveu realizar algum produto relacionado a isso para ter facilidades financeiras. Em preto e branco e com a real intenção de se aproximar do filme de Mario Peixoto, o curta não chega nem perto e tem uma proposta clássica demais. Nada parece ser dito com sutileza e, apesar de belas imagens recuperadas do filme, as referências ao longa se resumem a coloração do curta.


Seca. Fenômeno natural que se caracteriza pela ausência ou atraso das chuvas ou pela má distribuição da água. Problema enfrentado pelo no Nordeste brasileiro há décadas e que poderia ser considerado batido se a urgência em o debater não fosse perene. Seca, de Maria Augusta Ramos, o longa da noite, trata desse tema acompanhando um carro pipa pelo sertão. As histórias dos povoados e cidades por onde o carro passa, mesmo aquelas que parecem não ter muita relação com a água e com a seca, são narradas de forma natural. O filme possui várias características sempre vistas em filmes documentários tradicionais, daqueles que a massa está mais acostuma a assistir, como: iluminação natural, acompanhamento do cotidiano dos personagens, planos abertos que contextualizam o espectador.
O que se vê de diferente em Seca é a ausência de qualquer depoimento. As histórias são contadas a partir de imagens, sem a necessidade de qualquer narração, diferente e mais eficiente do que feito no curta Ifá. Nos momentos onde os depoimentos seriam cabíveis, existem conversas entre o homem que guia o carro pipa e algum morador que recebe a agua, entre um morador e outro, entre familiares. Outro ponto forte do filme é deixar clara a necessidade de ainda se falar sobre a seca em produtos audiovisuais que cheguem ao público e que conscientizem. Apesar disso, e apesar do título, o filme peca ao retratar uma história com esperança demais e crítica de menos. Na ânsia de se falar sobre todo o contexto da seca no Nordeste, o longa fala sobre água, sobre política, sobre fé, sobre esforços, sobre medidas, e não foca em nenhum deles.



Ifá poderia ter ido além do que se diz e ousado mais nas imagens que apresentou, misturando os elementos do candomblé e retratando a história contada pelo personagem de forma mais poética, como a dança da mulher negra do início do filme. Mar de Fogo destoa de outros trabalhos de Joel Pizzini e seria mais interessante se optasse por manter a estética muda do filme Limite, obra prima do homenageado Mario Peixoto. Seca se perde em tantas informações e poderia optar por uma temática de denúncia, como por exemplo, ser mais incisivo em como a politicagem agrava os problemas da seca no Nordeste. Com três filmes com propostas bastante interessantes, a noite de sábado acabou sendo a mais decepcionante do Panorama.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

COBERTURA XI PANORAMA INTERNACIONAL COISA DE CINEMA

A terceira noite da Mostra Competitiva Nacional do XI Panorama Internacional Coisa de Cinema teve como tema a juventude. Suas rotinas. Seus desejos. Seus medos. Seus passados. Seus amores e desafetos. Uma sessão para refletir as cabeças tão enigmáticas dos jovens do nosso país.



Imagens dizem mais que mil palavras. Fotografias impressas são documentos que podem durar a eternidade. De forma original e inovadora, A festa e os cães, de Leonardo Mouramateus revela o diretor e seus amigos através de fotografias tiradas no making off do curta História de uma pena (apresentado no Panorama na noite de segunda-feira), em festas e nas ruas. Em off, os amigos contam momentos de suas vidas tão diferentes, relembram passagens e dialogam sobre passado, presente e futuro. A grande sacada do filme é a habilidade de Mouramateus em contar histórias. A narrativa é clara, simples e muito bem construída. As histórias são narradas como em multiplots: cada uma tem suas particularidades, começam, terminam e não voltam mais. O ponto de encontro entre elas são as próprias fotografias. Mesmo que seja um pouco enfadonho em alguns momentos, A festa e os cães é, definitivamente, um filme único, do tipo que não poderá ser referenciado sem parecer uma cópia mal feita e sem graça.


Um dos momentos mais aguardados da adolescência, a perda da virgindade, é o tema do curta Virgindade, de Chico Lacerda. Enquanto imagens de uma cidade qualquer no Pernambuco passam na tela, a voz de Chico é ouvida em off narrando acontecimentos de sua vida, desde os primeiros desejos sexuais, até o momento em que descobre o sexo. Ainda nas imagens, vemos uma seleção de variados corpos masculinos, referência ao desejo, ao prazer, à beleza do corpo humano em sua essência. O problema, aqui é a forma como a história é contada, as palavras usadas e a certa “forçassão de barra” em se naturalizar tudo o que se diz. Nesse contexto, apesar de abordar um tema bastante pertinente, à medida que a sociedade brasileira ainda trata o sexo como tabu, o que faz os jovens ficarem bastante inseguros sobre o tema, Virgindade tem um ritmo um pouco lento e uma narrativa que poderia ser mais bem elaborada. 


Uma jovem está em uma balada. O som ensurdecedor da música incomoda o espectador. Segundos depois, a jovem está correndo. Parece fugir de alguém. Ela cai. Vira-se, encara a câmera e grita. Agora já não há mais música, apenas o grito da jovem. Grito que incomoda, ensurdece, agoniza, apavora. Mate-me por favor, de Anita Rocha da Silveira, sustenta essa atmosfera gerada na primeira sequência até seu último minuto. A história gira em torno de quatro amigas adolescentes que vivem no Rio de Janeiro em uma época de uma onda de assassinatos de jovens. O cotidiano delas (a escola, os amores, as festas, as risadas) estão sempre presentes, mas é o subjetivo que mais chama a atenção. Elas estão com medo dessas mortes, ou há alguma sensualidade que as conquista por trás do perigo? Com planos gerais que mostram a Barra, local onde elas moram, o filme utiliza a estranheza de uma parte da cidade do Rio de Janeiro para revelar uma imensidão que assusta. Ou que conquista.
E é graças a uma direção de núcleo competente e intepretações convincentes que logo nos damos conta de que mesmo os jovens da história estão confusos em relação ao que sentem sobre essas mortes. É claro que há um interesse demasiadamente grande. E não em saber quem é o assassino – dúvida que não toma o filme em nenhum momento – e sim em saber como as mortes aconteceram, quem eram as vítimas. Um interesse, talvez, em sentir na própria pele pelo que as vítimas passaram. Com planos bem compostos e alguns bastante longos, trilha sonora diversificada e sonoridade que, junto da montagem, segura o ritmo e a tensão, o filme tem imagem e som como grandes trunfos para fazer o espectador não sair da sala de cinema durante seus mais de 100 minutos, mesmo que o conjunto do longa não agrade tanto assim. E no desfecho, mesmo que de forma simples, uma constatação inesperada e arrebatadora. Ou, apenas, mais um monte de dúvidas.



A juventude apresentada pelos filmes da noite parece compor muito bem os jovens brasileiros. Curiosos pelo sexo, sedentos de atenção, conquistados pela exclusividade, expostos às dificuldades da vida, desanimados com as escolas, e ainda no desejo de curtirem a vida adoidados como o personagem de Matthew Broderick do filme da década de 1980. Apesar de temas um tanto clichês, os três filmes se mostram bastante inovadores na forma como essas narrativas são contadas, atribuindo a histórias comuns ou até corriqueiras para a sociedade brasileira (jovens num programa para quem não completou o ensino médio, um garoto descobrindo a sexualidade e garotas com os sentimentos à flor da pele em consequência de assassinatos muito inesperados) em eventos interessantes e bastante instigantes. 

COBERTURA XI PANORAMA INTERNACIONAL COISA DE CINEMA

O segundo dia da mostra competitiva do XI Panorama Internacional Coisa de Cinema foi um dos mais aguardados de todo o evento. Segundo Cláudio Marques, coordenador do Panorama e curador dos longas das mostras nacional e internacional, a sessão ficou conhecida nos bastidores como “sessão estranheza”. E não é para menos.



Um escritório claustrofóbico. Cinco operários. Um patrão. O homem que virou armário, de Marcelo Ikeda, apresenta uma sociedade ultrapassada, limitada. Aqui, não há a necessidade de se utilizar das novas tecnologias para criticar o vício em trabalho. De forma muito inteligente, o média opta por esse espaço que lembra as décadas passadas e o trabalho com o papel, e não com computadores, para exemplificar claramente o trabalho operário. Com apenas uma fala durante o filme, esse é o tipo de produto que se constrói pelo som e pelas imagens, pelos olhares e pelos gestos dos personagens. No som, o silêncio e os “barulhos” cotidianos do escritório que o quebram, como o relógio que anda vagarosamente, a mulher que lixa as unhas, o homem que carimba os papéis, a mulher que conta o número de folhas, o patrão que abre e fecha gavetas bruscamente. Nos personagens, o suor, a indiferença, a falta de importância de uns com os outros e uma única palavra que muda, de forma muito poética, um mundo todo.


Um casal de idosos almoça em uma cozinha apertada. Um plano longo, carregado de realidade pelo ângulo escolhido e pelas interpretações dos atores. Os dois intérpretes são os pais de André Novais, diretor de Quintal, filme vencedor no Festival de Brasília. No média, a história gira em torno desse casal e das improbabilidades e obviedades do cotidiano de um casal de idosos. A estranheza? Uma espécie de portal que surge nesse quintal. Um portal que representa, metaforicamente, o quanto a vida dos idosos pode ser interessante e agitada no cotidiano. Ao menos para eles, que, quando chegam nessa idade, percebem que são capazes de fazer muito mais do que era esperado. Cada dia acaba se tornando uma verdadeira aventura. Com cenas resolvidas em poucos planos (geralmente longos e fixos), o filme mescla o documental e a ficção, tem efeitos visuais bastante realistas e faz rir e refletir sobre a vida e o futuro.


O calor e o sol são a únicas certezas na vida de Guima, um poeta que não consegue escrever um livro patrocinado pelo estado da Bahia. Com uma câmera na mão, o longa da noite, Tropykaos, de Daniel Lisboa, acompanha os dias na vida desse jovem, que perambula pela escaldante capital baiana de tênis, calça e moletom. Logo nos primeiros planos, o espectador é lançado para o cotidiano de Guima (ainda mais quando o filme é assistido na própria Salvador), e começa a entender sua angústia rapidamente. O ritmo criado ao longo da trama e o som que induz o espectador a sentir as emoções do protagonista são o grande trunfo do filme. Entretanto, sente-se falta de mais algumas ousadias. Tropycaos é um filme que permeia o fantástico. Guima não está apenas sofrendo com o calor, ele está, literalmente, queimando, entrando em combustão. Momentos como quando o sol parece queimar a tela do cinema, ou quando uma montagem frenética alterna entre Guima e outros elementos que representam o agito e o calor nas ruas de Salvador são as melhores sequencias do filme, mas são mais raras do que deveriam. 
O roteiro, de Guilherme Sarmiento, é claramente metafórico. O calor sentido por Guima não é causado apenas pelo sol, o astro que queima lá em cima. O próprio calor tem muito mais a ver com os medos, as angústias, os sentimentos do protagonista. O sol que queima, é a pressão de um governo que espera que a arte de Guima seja feita de forma processual. É a burguesia, representada por sua própria família, sempre preocupada com as aparências. É a religião, que exige a escolha de um Deus, de um demônio, de uma fé única, inabalável e incontestável. É, acima de tudo, a intolerância que tomou conta de nossa sociedade nos últimos anos, que julga, aponta e mata todos os dias no Brasil. Para deixar essas representações claras, Sarmiento opta pela fantasia de forma sublime. O ar condicionado e a falta que ele faz, sem dúvidas, incomoda mais que o necessário, chegando ao exagero. O produto final das ideias do roteirista poupa no experimentalismo, resume a negritude baiana em apenas um radialista e algumas representações que poderiam ser ressaltadas ficam apenas numa metáfora sutil e muito sem graça.


Nos últimos anos, o cinema brasileiro tem recebido um número nunca antes visto de filmes que se entregam ao mundo do fantástico de forma muito positiva. Alguns deles, como no caso de Tropykaos, ainda há um medo de se experimentar essa tendência. O mais interessante desses filmes é como a fantasia é utilizada como elemento que nos faz pensar sobre como a sociedade tem vivido e como estamos condicionados a pensamentos que são mais que ultrapassados. Os curtas da noite são mais ousados e, apesar de o público ainda não estar habituado a esse tipo de narrativa e de linguagem cinematográfica, são filmes que conquistam aos poucos. O Panorama, por sorte, ainda é um festival jovem em idade e, por isso, pronto para receber essas novas tendências e revelar o quanto elas são significativas para o cinema brasileiro.

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