sexta-feira, 31 de outubro de 2014

... LEVANTA, SACODE A POEIRA...

Especial X Panorama Internacional Coisa de Cinema. Filmes: "My name is Now, Elza Soares" e "Castanha"



A segunda metade do dia de quinta-feira (30) foi dedicada, respectivamente, a filmes da Mostra Panorama Brasil (fora das competitivas) e da Mostra da Competitiva Nacional, “My name is now, Elza Soares”, de Elizabete Maria Campos, que conta com participação da própria Elza para contar sua história de vida e falar sobre seus pensamentos, e “Castanha”, de Davi Pretto, que conta a história de João Carlos Castanha, um ator homossexual que ganha a vida nos palcos (como transformista ou não). Durante a apresentação do primeiro longa, o festival recebeu a visita dos alunos oitavo ano/sétima série (entre 12 e 14 anos) da Escola Estadual Edvaldo Brandão Correa, acompanhados pelo professor Sandro Augusto*. Segundo ele o cinema é uma nova linguagem, “o filme, hoje, não ocupa mais uma condição de marginalidade” tornando-se “uma ferramenta auxiliar para a gente dar aula”. Entretanto, Sandro acha que os jovens cachoeiranos ainda não conseguem mensurar a importância da produção cinematográfica para a cidade de Cachoeira. Sandro considera que, mesmo sendo bom, para a formação cognitiva dos jovens, o cinema ainda está muito distante deles, faltando alguma ferramenta de aproximação para eventos como o Panorama e o próprio CachoeiraDoc (o festival de Documentários de Cachoeira que é atrelado à Universidade). Uma das alternativas seria ir nas comunidades divulgado o evento e atraindo o público para assistir aos filmes e participar das oficinas oferecidas.
 “My Name is Now, Elza Soares” inicia da forma mais clichê possível: com a personagem título entoando um de seus sucessos. Os clichês param por aí. Elizabete Martins Campos traz um filme tão convencional quanto a própria cantora. Diferente de outros documentários, explora a alma da personagem principal, apresentando seus depoimentos sobre a vida, sobre o que passou e sobre o que Elza espera do futuro. Não existem aqueles relados comuns onde a cantora poderia falar e falar sobre sua infância pobre e sua juventude conturbada. Essa mulher negra e pobre, como ela mesma se define, uma pessoa que pode ser tudo ou nada, prefere falar sobre seus pensamentos, seus desejos, suas visões sobre a vida, seus sentimentos em relação à vida. As histórias reais, sobre como chegou ao estrelato, como conheceu, se apaixonou e casou com Garrincha, a perda do filho, os sofrimentos por ser uma minoria completamente reprimida são deixados para segundo plano. Temos aqui a Elza Soares de agora, mais viva que nunca. Temos lembranças de uma Elza que ainda está aqui e ali. Lembranças de uma Elza que insiste em viver o agora, que insiste em viver agora. Uma Elza que vive. Uma Elza que viverá para sempre.

Filme: "My name is Now, Elza Soares", de Elizabete Martins Campos
Entretanto, a diferença deste documentário para os convencionais não é apenas na narrativa. Elizabete Martins Campos escolheu diversificar totalmente na forma de realizar seu filme. As fotografias e registros clássicos de qualquer filme do gênero ainda estão presentes. Elza canta enquanto esses registros são apresentados. Todavia, em sobreposição a esses registros, aparecem luzes, focos e outros artifícios para diferenciar a imagem sem deixar com que ela se perca. A diretora faz paralelos, por exemplo, entre o rosto de Elza e uma lua cheia que ora aparece por completo, ora some devido a uma nuvem muito escura. Elza aparece nua. Elza faz fotos sensuais. Elza se veste como madrinha de bateria de uma escola de samba. Elza é massageada por um homem sexy. E Elza canta. Elza canta seus maiores sucessos e, ao invés de contar seu passado, relembra músicas que diziam muito sobre a época, ou músicas que dizem muito sobre o hoje, sobre o Agora. Tudo isso, claramente, é feito para aproximar a produção da protagonista. Este filme é sobre Elza. É um filme para Elza. É um filme de Elza. “My name is Now, Elza Soares” é um filme que respira, transpira, inspira Elza Soares como poucas produções conseguem fazer com seus protagonistas.
“Castanha”, também possui um pé no documentário, mas usa do artifício da ficção para se completar. Após se formar na PUCRS em Cinema, Davi Pretto acabou conhecendo João Carlos Castanha, um ator conhecido na capital gaúcha. Durante alguns anos, Davi fez uma espécie de laboratório conversando e conhecendo mais sobre a vida do artista e de sua mãe, Dona Celina. Quando tudo estava pronto, Davi acompanhou a vida dos dois durante vinte dias, filmando tudo o que desejava e lhe era permitido. Algumas coisas eram espontâneas, outras respeitavam um roteiro que, geralmente, recriava acontecimentos, ou apenas improvisações dos personagens. A história, além de contar com mãe e filho, contava, também, com um sobrinho de João Carlos, um jovem viciado em drogas que é interpretado por um ator. O longa, realizado com um orçamento baixíssimo, tem como primeira cena um homem nu coberto de sangue, dos pés à cabeça. Pela imagem e pela música (uma união de todas as músicas criadas para o filme) já se pode ter noção do que virá: um filme melancólico, denso, forte, escuro, com vários contrastes e muitas surpresas. Aquele homem, no final das contas, é o exterior do que, na maior parte do longa, se passa na cabeça e na vida do protagonista. A cena, segundo Davi, é um resumo de tudo o que está por vir.

Filme: "Castanha", de Davi Pretto
Mas não é apenas o cuidado técnico (que traz uma fotografia incrível, uma edição sonora impressionante, uma direção de arte minimalista) e com o roteiro que surpreendem no filme. Os personagens reais são o maior trunfo do diretor. Dona Celina é uma mulher espontânea, engraçada, simples e que representa perfeitamente as mães e mulheres que conhecemos. João é uma figura rara em meio aos milhões de habitantes de Porto Alegre, um verdadeiro artista em busca da compreensão de sua alma e de todos os demais seres humanos. As situações vistas no filme são as mais diversas, sempre permeando pela naturalidade e veracidade, tornando o filme engraçado em cenas como quando Dona Celina discute com a síndica do prédio em que vivem, e emocionante em momentos como quando ela desabafa sobre a vida. João possui seus melhores momentos durante suas apresentações, revelando que o palco (independente da forma como ele esteja representando) é a fuga para os problemas e frustrações de sua vida. É no palco que Castanha se sente vivo, revigorado. É o palco que o estimula para continuar vivendo.
Assistir a essas duas espécies de cinebiografias em um mesmo dia foi, sem dúvida, uma experiência interessante. Elza Soares e João Carlos Castanha possuem mais em comum do que possam imaginar. São duas figuras enigmáticas, cheias de histórias para contar, duas personalidades vividas que já passaram por muito sofrimento, muita dor e muito preconceito, ela, por ser uma mulher negra e pobre, ele, por ser um ator homossexual e transformista. Os filmes, nesse contexto, acompanham as personalidades de cada um: “My name is now, Elza Soares” é um filme com muito jogo de luz tornando-o tão artístico quanto a própria figura de Elza, e que concilia a voz espetacular da cantora com uma sonorização de arrepiar, “Castanha” é um filme tão sombrio quanto o interior do protagonista ou pelo momento em que ele vive e usa o contraste de luz para relevar as nuances vividas por João Carlos. Ambos os longas são impressionantes. Ambos os protagonistas são impressionantes. E melhor de tudo é ver como os dois abraçaram suas respectivas artes e se jogam no mundo através delas, por elas e tendo nelas seus maiores escudos contra os preconceitos da humanidade. São duas figuras que, como qualquer bom brasileiro, sofrem, mas, independe do que aconteça, se erguem do mais profundo do poço e dão a volta por cima.
*Sandro Augusto é estudante do oitavo semestre do curso de história da UFRB e professor estagiário na Escola Estadual Rômulo Galvão e bolsista de iniciação à docência (Pibid) na Escola Estadual Edvaldo Brandão Correa, levou os alunos do oitavo ano/sétima série (entre 12 e 14 anos) desta instituição para assistirem ao filme “My name is now, Elza Soares”. 

Após a apresentação do filme "Castanha", o diretor Davi Pretto, conversou com o público no Auditório do Centro de Artes, Humanidades e Letras da UFRB, na cidade de Cachoeira.

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quinta-feira, 30 de outubro de 2014

DOS DILEMAS JUVENIS À PSIQUÉ HUMANA

Especial X Panorama Internacional Coisa de Cinema. Filmes: "Menino da Gamboa", "O Filme de Carlinhos", "O Velho Rei", "Materno", "Antiok" e "10-5-2012".



Na manhã desta quinta-feira (30), o X Festival Panorama Coisa de Cinema que acontece em Salvador e na cidade de Cachoeira, em parceria com o Cineclube Mario Gusmão, apresentou cinco filmes da Mostra Competitiva Baiana. “Menino da Gamboa”, de Pedro Perazzo e Rodrigo Luna, conta histórias de meninos da praia baiana e da influência dos garotos mais velhos sobre os mesmos; “O Filme de Carlinhos”, de Henrique Filho, é uma metalinguagem sobre um menino apaixonado por cinema que deseja realizar sua primeira produção; “O Velho Rei”, de Ceci Alves, traz um pai que vive no Rio de Janeiro e faz um vídeo para sua filha que mora em Salvador e que deseja se sentir mais perto dele; “Materno”, de Arlequine Sampaio e Ruy Dutra, é uma produção perturbadora sobre uma mulher grávida que cuida do filho em estado vegetativo; “Antiok”, de Dario Vetere, é uma ficção sobre uma sociedade utópica em que novos avanços tentam equilibrar de forma justa a humanidade; e “10-5-2012”, de Álvaro Andrade, é um surpreendente relato sobre um homem e seus desabafos sobre a vida.

Filme: “Menino da Gamboa”, de Pedro Perazzo e Rodrigo Luna
Os exemplos, segundo especialistas, são o que fazem o ser humano agir desde os primeiros passos até o último suspiro. O protagonista de “Menino da Gamboa” vê em seu irmão seu maior exemplo. Vendo o irmão mais velho trabalhando carregando bagagens de turistas em um carrinho de mão, o garoto sente a necessidade de fazer alguma coisa que se aproxime de um trabalho sério. Assim, deixa as brincadeiras infantis de lado, cria seu próprio carrinho e oferece seu trabalho de carregador a quem precisa. Mas será que as brincadeiras infantis devem ser deixadas de lado por uma criança para que ela se dedique ao trabalho? Em uma das cenas mais marcantes que vi nos últimos anos, o menino deve escolher entre brincar ou trabalhar. É com se ele fosse o Manuel de Glauber Rocha, ficando entre a cruz e a espada, entre Deus e o Diabo. Mas quem seria Deus e quem seria o Diabo para uma criança? No lugar dela, o que você escolheria?

Filme: “O Filme de Carlinhos”, de Henrique Filho
Um dos filmes mais tocantes para quem ama ou faz cinema, “O Filme de Carlinhos” é um curta-metragem tocante e emocionante. Carlinhos vive na companhia de um senhor que cuida de uma locadora e divide com o mesmo sua paixão pela Sétima Arte. Certo dia, ao invés de fazer os deveres de casa, o garoto resolve escrever um roteiro. Dali pra frente, mesmo sem o apoio do pai (que quer que o filho se torne um “doutor”) arruma os atores (colegas da escola), o operador de câmera, patrocínio e tudo o que ele acredita ser necessário para sua produção. Apesar de ter atores jovens pouco convincentes (mesmo que simpáticos), os atores mais velhos seguram a cena, o protagonista, Carlinhos, não titubeia no momento mais tocante do filme  e a qualidade da fotografia e do som são um primor. “O Filme de Carlinhos” é o tipo de metalinguagem que nos faz perguntar como seria se um filme fosse feito daquela forma. Como seria se crianças realizassem um filme como aquele? Quais seriam as intenções? Em que gênero se enquadraria? Quais seriam as inspirações? Qual seria o resultado final?

Filme: “O Velho Rei”, de Ceci Alves

Seguindo de “O Filme de Carlinhos”, um filme com o qual me identifiquei em vários momentos (desde o processo criativo até a reação dos familiares), veio “O Velho Rei”, que também me conquistou pelas identificações. Como a jovem que envia uma câmera ao pai, eu também vivi longe do meu pai durante anos. Enquanto vemos o esforço do homem em tentar fazer os vídeos para enviar à filha, questionamo-nos até que ponto nós seríamos capazes de fazer o mesmo. O homem em questão, interpretado magistralmente pelo veterano Antonio Pitanga, é um verdadeiro rei (com todos os atributos necessários para um homem ser justo e humano), e um velho também, uma alma velha e vivida que reconhece a necessidade de estar próximo à filha e de a filha estar próxima a ele, mesmo que distantes fisicamente. A veracidade e a emoção com a qual o pai grava e com a qual a filha assiste ao vídeo mostram o porquê a vida vale a pena.

Filme: “Materno”, de Arlequine Sampaio e Ruy Dutra
“Materno” possui uma atmosfera densa e perturbadora. É a história de uma mãe que, enquanto espera um filho nascer, também espera um filho morrer ou, em uma esperança distante (talvez utópica) renascer. A proposta do filme ao mostrar esses lados intensos da vida de Marta é incrível. Aquele filho deitado na cama, ora parece representar o filho que está dentro de Marta, esperando para vir ao mundo (seja morto ou vivo), ora parece a personificação do estado espiritual da protagonista, que, por sua vez, ora parece querer estar viva pelo filho que vem, ora parece preferir morrer junto do filho que está morrendo. A direção de arte e de som do curta são espetaculares, minimalistas e cheias de riquezas nos detalhes. Todavia, o conjunto da produção não é tão interessante quanto o esperado. O filme é longo demais e um pouco apelativo. A qualidade técnica é inegável, mas “Materno” não convence.
Filme:  “Antiok”, de Dario Vetere
Mais não convincente que “Materno”, entretanto, é “Antiok”, outra produção com uma proposta interessante, mas que não vai muito adiante disso. A história gira em torno de um rapaz cheio de diferenças que, na década de 1980, consegue prever o futuro da humanidade. Usando-o, alguns cientistas o estudam e tentam pensar em soluções para que o mundo não se perca nos próximos anos. Apesar de possuir fotografia exemplar e uma trilha sonora com músicas muito propícias para cada momento do filme, o ator que interpreta Antiok tenta ser mecânico para remeter à ficção, mas se torna superficial e pouco interessante. “Antiok” é um filme que funciona como primeiro capítulo de uma série. E talvez esse seja seu problema: é o tipo de produção que funciona como uma série, repleta de episódios sequencias, não como um filme único.

Filme: “10-5-2012”, de Álvaro Andrade

De todos os filmes apresentados durante essa sessão, confesso que “10-5-2012” era o filme que menos me animava. O início do curta se mostra uma real decepção e o problema dele é o mesmo dos dois anteriores: longo demais. Entretanto, a diferença está na forma como a proposta foi conduzida. “10-5-2012” traz um câmera que narra o filme todo em off enquanto observa outro homem, um rapaz com TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) que vive perto de sua casa. O tal câmera, passa, então (e aí está o trunfo), a acompanhar o rapaz e refletir sobre sua vida e do “amigo”. Apesar de a câmera usada pelo homem não trazer uma boa imagem, o que prejudica a fotografia de forma triste. O câmera passa, segundo ele mesmo, a filmar à toa, como se fosse um hobbie, ou seja, sem muitas preocupações. Mas o que esse homem registra? O indivíduo com TOC e suas ações curiosas? Ou sua própria voz falando de sua vida? A câmera funciona como forma de registrar o movimentos do homem que está sendo observado? Ou é o mecanismo de o câmera externar suas opiniões, anseios, dúvidas?
Essa sessão pode ser facilmente dividida em dois grupos: ”Menino da Gamboa”, “O Filme de Carlinhos” e “O Velho Rei” são um deles, “Materno”, “Antiok” e “10-5-2012” são o outro. O primeiro é um grupo de filmes que mostram relações familiares e de exemplos. Como referências familiares, temos o irmão mais velho, os pais de Carlinhos e o pai que vive longe. Como exemplos, novamente o irmão mais velho, o dono de uma locadora e, novamente, o pai que está longe. No segundo grupo, temos uma visão um pouco mais perturbadora da vida, um lado diferente das reflexões humanas. “Materno” põe à prova o lado materno de cada mulher explorando o mais íntimo do corpo e da mente feminina, “Antiok” questiona quais os rumos a sociedade está tomando devido às suas atitudes e “10-5-2012” realça como o ser humano precisa tomar por base os problemas e vidas de outros seres humanos para encontrar a si próprios. Todos filmes que provocam as mais diferentes reações no público, o que os torna, no mínimo, curiosos.

Conversa com Pedro Perazzo e Rodrigo Lima, de "Menino da Gamboa", e com Camila Camila, de Materno após a sessão
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quarta-feira, 29 de outubro de 2014

EU, TU, ELE, ELA, NÓS, VÓS, ELAS, ELES

Especial X Panorama Internacional Coisa de Cinema: "Camila", A Era de Ouro" e "Ela Volta na Quinta"



Em 2002, aconteceu a primeira edição do Panorama Internacional Coisa de Cinema. Segundo seus realizadores, os cineastas Cláudio Marques e Marília Hughes, “o sucesso daquele primeiro ano mostrou que o público baiano estava ansioso para ver um cinema diverso”. Até o final daquela década, os festivais de cinema ganharam força no Brasil todo. Este ano, o Panorama será realizado entre os dias 29 de outubro e 2 de novembro e, além de contar com as tradicionais competitivas de filmes baianos e de filmes nacionais, o Festival conta com retrospectivas do cineasta americano Stanley Kubrick, do cineasta russo Sergei Eisenstein e da cineasta francesa Mia Hansen-Love e com mostras de filmes alemães e italianos. Para finalizar, esta edição traz  o Laboratório de Roteiros, a já tradicional oficina de Escrita Crítica e a nova oficina de Assistência de Direção, ministradas, respectivamente, por Aleksei Wrobel, Fabio Meira e Felipe Bragança, Rafael Carvalho e Marcelo Caetano.
Devido ao vínculo criado e alimentado durante os últimos anos entre a capital baiana e a cidade de Cachoeira, a poucos quilômetros de Salvador, desde 2012, na cidade, que abriga o curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, o CineClube Mario Gusmão, projeto criado em 2010 pela Universidade, se tornou parceiro da produtora Coisa de Cinema, apresentando alguns filmes e sediando oficinas na cidade de Cachoeira durante a semana que o Panorama acontece em Salvador. Esse ano, a oficina escolhida para a cidade foi a de Assistência de Direção, além de mais de trinta filmes, dentre eles, os filmes de retrospectiva: “2001 – Uma Odisseia no Espaço” (1968), de Kubrick, “Tudo Perdoado” (2007) e “O Pai dos Meus Filhos” (2009), ambos de Hansen-Love; e filmes que vem fazendo sucesso em festivais no país todo, como “My Name is Now, Elza Soares”, de Elizabete Martins Campos, “A História da Eternidade”, de Camilo Cavalcanti e “Brasil S/A”, de Marcelo Pedroso.

Filme "Camila", de Clarissa Rebouças e Virginie Dubois
Nesta segunda-feira (29), na cidade de Cachoeira, foram apresentados os longas de retrospectivas “2001 – Uma Odisseia no Espaço” e “Tudo Perdoado”, durante a noite, a Competitiva Nacional trouxe os curtas “Camila”, de Clarissa Rebouças e Viginie Dubois e “A Era de Ouro”, de Leonardo Mouramateus e Miguel Antunes Ramos, e o longa “Ela Volta na Quinta”, de André Novais. “Camila” conta a história de uma jovem que vai à procura do marido de quem não tem notícias há semanas no Canadá; “A Era de Ouro” apresenta uma sociedade paulista protagonizada por um homem e uma mulher que vivem no mundo da valorização extrema do dinheiro; e “Ela Volta na Quinta” revela uma sociedade mineira muito simples e cotidiana, onde vive um casal de senhores e seus filhos.
“Camila” é um filme de apenas seis minutos que, como a própria diretora revelou, “tem que ser um tiro certeiro”, como qualquer outro curta-metragem. Com uma câmera de mão ágil, o curta, protagonizado por Clarissa, coloca o espectador no lugar da protagonista, transforma quem assiste o filme em personagem, expondo-o a qualquer situação vivida pela ficção. Pelo tempo de filme não há muito o que falar sobre esse verdadeiro “tiro certeiro” sem revelar alguns elementos essenciais sobre seu enredo, assim, apenas digo que quando a protagonista chega no Canadá, encontra o marido e descobre algo surpreendente. O que fica são as surpresas e os questionamentos: o que você faria no lugar dela? Correria? Faria um escândalo? Chamaria a polícia? Tentaria se matar? Não faria nada? Ou não faria nada disso? Camila reagiu conforme sua espontaneidade mandava, mas e você?

Filme "A Era de Ouro", de Leonardo Mouramateus e Miguel Antunes Ramos
Se “Camila” já é um filme reflexivo que põe em teste as relações humanas, o mesmo podemos dizer do filme que foi apresentado na sequência. “A Era de Ouro” mostra um casal de amigos que foram mais próximos na juventude, até que ela resolveu mudar para a capital. O curta se passa em uma visita que David faz para Simone. Durante tal visita, os ânimos se alteram enquanto o casal lembra do passado e David questiona por quê a vida cheia de riquezas é tão importante para Simone. As questões aqui, entretanto, diferem do filme anterior. Indagamo-nos qual o papel do dinheiro na sociedade, por que o dinheiro e os bens materiais são tão importantes? Por que as pessoas ricas dão tanta importância ao dinheiro? Em uma cena pra lá de metafórica (aliás, o curta é pura metáfora), ricos empresários falam sobre a valorização de uma padaria e contam que, para ganharem a conta pretendida, Simone teve que seduzir o filho do dono da padaria. Vê-se a valorização clara do produto, e a desvalorização de Simone (apresentada como outro produto). Que valor tem essa era em que todos pensam e desejam dinheiro e poder?
“Ela Volta na Quinta” é um filme realizado por André Novais e que conta com sua própria família no elenco. Não é um documentário. É uma ficção. É a realidade na ficção. Ou a ficção na realidade? O fato é que André escreveu um roteiro romântico sobre um casal de senhores (seus pais) que vivem suas vidas juntos e, em um dado momento, resolvem se separar. Paralelamente, existem as vidas de André e seu irmão. A ficção está no divórcio, nas traições e nos elementos que nos lembra um romance típico, a realidade está no perfil dos personagens, nas situações vividas (em uma cena brilhante, André e o pai assistem a vídeos virais na internet), na simplicidade de se viver a vida. Diferente dos outros filmes da noite, é um drama mais simples, mais cotidiano. Semelhante aos curtas, é um filme que explora as relações humanos de forma intensa, destacando a dualidade masculino-feminino. As reflexões sobre a vida são muito intensas e chegam pelos momentos mais íntimos, como quando a mãe relembra uma história do pai enquanto passa mal na cama e é cuidada pelo filho. A vida é curta demais para nos preocuparmos tanto? Vivemos mais do que deveríamos? Aproveitamos o suficiente o tempo que temos na terra?

Filme "Ela Volta na Quinta", de André Novais

“Camila”, “A Era de Ouro” e “Ela Volta na Quinta” possuem mais que apenas reflexões sobre a vida e a exploração do tema da dualidade em comum. São filmes de qualidades técnicas impressionantes. Cada um chama a atenção por um aspecto. Para mim, foi a câmera de mão, as metáforas e a exploração do cotidiano, respectivamente, que mais me atraíram para dentro das produções. Se ao final de “Camila” é possível responder aos questionamentos acerca da atitude da jovem é algo impossível de se dizer. Vai de espectador para espectador. E talvez esse seja o melhor trunfo do curta. Quão dourado é o mundo consumista e capitalista que vivemos e que é apresentado em “A Era de Ouro” não sabemos. É um mundo do ouro encontrado pelos Europeus quando chegaram ao Brasil, ou é o ouro de tolo deixado nas igrejas mineiras depois que o outro real era roubado? A cada momento, parece que se pensa em quanto vale cada ser humano, pior, por quanto cada ser humano pode ser vendido para dar lucros a outras pessoas. E essa vida cotidiana? Essa simplicidade que encanta a todos de forma tão singela e bela? Seria melhor viver cercado pelo luxo sem ter amigos ou amores de verdade? Ou é melhor levar uma vida simples cheia de altos e baixos e ter sempre pessoas amadas por perto? Quem sabe?

Conversa após a apresentação dos três filmes com Clarissa Rebouças e André Novais, onde os cineastas falaram sobre o processo de criação e de realização dos filmes e sobre suas intenções ao fazê-los.
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domingo, 26 de outubro de 2014

HOUSE OF CARDS – Parte I – Análise

“Ele escolheu o dinheiro em vez de poder. Um erro que quase todos cometem nessa cidade (Washington). Dinheiro é a mansão do bairro errado, que começa a desmoronar em 10 anos. Poder é o velho edifício de pedra, que se mantém por séculos. Não respeito quem não sabe distinguir os dois”
Francis Underwood


CONFIRA A PARTE II: PERSONAGENS AQUI
CONFIRA A PARTE III: TEMPORADA POR TEMPORADA AQUI



Criação:Deau Williomon
Elenco Principal: Kevin Spacey, Robin Wright, Michael Kelly, Michael Gill, Kate Mara, Nathan Darrow, Sakina Jaffrey, Kristen Connolly, Mahershala Ali, Rachel Brosnahn, Sebastian Arcelus, Elizabeth Norment, Gerald McRaney, Constance Zimmer, Corey Stoll, Molly Parker, Reg E. Cathey, Larry Pine, Sandrine holt, Jayne Atkinson
Roteiro: Diversos
Temporadas (anos): 1 (2013), 2 (2014)
Duração (cada episódio): 50 min.
Gênero: Drama / Thriller

Francis Underwood é um membro do Congresso dos Estados Unidos. Líder do partido Democrata, Frank é casado com a bela Claire, diretora de uma Organização Não Governamental que luta pela preservação e distribuição igualitária da água potável. Frank e Claire vivem sozinhos em uma mansão em Washington. O casal não possui amigos. Não teve filhos. Não têm uma vida social além do necessário. Mas Frank e Claire possuem inteligência, astúcia e, o mais importante, sede pelo poder. Quando Frank apoiou Garrett Walker para presidente dos Estados Unidos, Walker prometeu que se consquistasse o cargo, lhe nomearia como Secretário de Estado. Garrett foi eleito, mas Francis não recebeu a nomeação que esperava. Assim, os planos de Frank foram por água-abaixo e ele teve de repensar em sua vida. Simples: aniquilar todos os que entrassem em seu caminho na busca do poder. Assessorado por Douglas Stamper, Frank começa a articular para conquistar um cargo ao lado do presidente. Para tornar isso mais fácil, o congressista faz uma aliança com Zoe Barnes, uma jornalista. Frank consegue colocar sua amiga de longa data, Catherine Durant, como Secretária de Estado e começa a promover um alcoólatra, Peter Russo, para governador. Mas será que Frank ajudou Cathy e está ajudando Peter por ser um homem de visão e por esperar que essas pessoas possam ajudá-lo no futuro? As atitudes de Francis Underwood vão além de meros favores. Francis é corrosivo, interesseiro e individualista, esperando, sempre, o momento certo para puxar a carta que sustenta o castelo de cada ser humano do qual se aproxima, e é claro que os destroços não demoronarão sobre ele.
“House of Cards” é uma produção americana que trata dos jogos de poder dentro da política nos Estados Unidos. Entretanto, a série é baseada em uma minissérie britânica que relatava a busca de um tal Francis Urquhart, interpretado por Ian Richardson, que manipulava a tudo e todos para poder chegar ao cargo máximo da política inglesa: primeiro-ministro. Não obstante, a minissérie é baseada no livro homônimo de Michael Dobbs que também trata da vida do governista do Parlamento Britânico. “House of Cards” é uma produção da Netflix, site que se torna cada vez mais popular justamente por trazer produções imensas para a internet. Elenco, produção, direção, roteiro, trilha sonora, fotografia e edição, tudo o que compõe “House of Cards”, todavia, é típico das grandes produções televisivas de canais como BBC e HBO. Melhor, a produção possui características nas interpretações e no enredo que lembram os grandes filmes políticos da Era de Ouro de Hollywood com as características técnicas vistas nas grandes produções de hoje.


A história, que gira em torno de Francis, é extremamente bem articulada e desenvolvida. A relação do congressista com a jornalista, por exemplo, inicia como uma relação de interesse mútuo: ela quer desvendar o sistema corrupto do Congresso, ele precisa de alguém que publique em primeira mão os problemas de seus desafetos dentro da política. Claro que a relação dos dois passará para uma segunda etapa quando começam a se envolver sexualmente. Apesar disso, Francis deixa muito claro que não possui interesses em desenvolver qualquer sentimento pela moça, apenas a está usando como objeto sexual e como forma de atingir interesses. E, devido a uma troca de palavras entre ele e Claire, compreendemos que Frank não é nenhum iniciante nessa prática de dormir com alguém para atingir seus objetos, ao passo que, Zoe ainda se sente mal por, pela primeira vez, estar dormindo com um homem para conseguir uma matéria decente. Frank é o retrato da experiência, enquanto Zoe é a representação da inocência.
Mas não é apenas Frank que tem seus momentos de infidelidade. Claire, aparentemente, também já teve seus romances. E Frank, como Claire sabe sobre Zoe, sabe sobre o envolvimento da esposa com um fotógrafo. Adam e Claire se conheceram e começaram a se relacionar graças à ONG que ela administra, tiveram alguns dias de romance e se separaram. Ao longo da série, Claire precisará da ajuda de Adam novamente e os dois voltarão a ter algumas noites de prazer. E se não podemos ter certeza se a protagonista já traiu o marido com mais alguém, podemos afirmar que ela não se sentiria nem um pouco enojada de ter de usar o sexo para atingir os objetivos que almeja, como Francis faz com Zoe. E se os dois tiverem de usar tudo isso juntos, o farão. Mas tudo isso, todas essas suposições, essas loucuras e essas atitudes são apresentadas por um roteiro muito sutil, simples, delicado. Os ambientes em “House of Cards” são clássicos e minimalistas. As roupas de Claire são muito escuras ou muito claras, pretas e brancas, azuis marinho e tons pasteis. A casa dos Underwood possui as mesmas características e os móveis são dispostos de forma muito perfeita. Vê-se, sem muito esforço, que quem habita aquela casa é meticuloso e muito organizado.


E por que não dizer que o roteiro da produção possui um teor implícito inigualável? Os assassinatos como forma de chegar ao poder, por exemplo, são raros, mas existem. O apelo sexual é dispensado, mas sabemos o quanto os personagens se sentem tentados a cometer o pecado da luxúria. Aliás, tonar o sexo implícito o deixa ainda mias sensual que mostrar cenas de sexo a todo momento. Além das palavras ditas por Francis para o espectador (o protagonista, em momentos oportunos e mantendo a tradição de Ian Richardson, olha para a câmera e conversa com o público de maneira intimista e até graciosa), ele se reserva ao direito de, em momentos em que a palavra é desnecessária ou impossível de ser dita, apenas usar os olhos para expressar sua ironia, seu deboche ou sua indignação pelo fato de algumas pessoas parecerem estar pedindo para serem presas em sua teia. Isso tudo, sem falar nas trocas de olhares do protagonista com sua esposa.
Claire e Francis não precisam de palavras, para o casal, bastam gestos e expressões que digam o que pensam e o que desejam. Claire e Frank se conhecem e se compreendem como poucos. Ela chega a exigir, após Frank prometer que tudo ficaria bem, que ele tome providências para que os dois possam, no mínimo, continuar levando a vida que levam (e se Francis puder elevar o patamar de vida, tanto melhor). E mais interessante: Frank obedece a ordem da esposa. Inesperadamente, ainda no início da série, Claire não dá a mínima para o caso do marido e de Zoe. Ele, por sua vez, releva o romance de Claire com Adam. Em dado momento, Claire, sabendo que tanto Francis quanto ela precisam relaxar, chega a planejar uma noite na companhia de outra pessoa. A Sra. Underwood provoca um acidente doméstico para que esse indivíduo se machuque, cuida dele, embebeda-o e espera Frank chegar para que, juntos, os três protagonizem uma das cenas mais surpreendentes da série. E se Francis precisa que Claire deixe toda sua vida de lado em prol de seus interesses profissionais, ela o faz, sempre recebendo uma recompensa aqui e outra ali, para que, em um futuro próximo, volte a fazer favores para o marido. Se Frank e Claire se amam é uma pergunta praticamente impossível de responder, e é por esse mistério, que esse casal (ou dupla, ou comparsas, ou seja lá como preferir rotulá-los) se torna tão contraditoriamente admirado e odiado pelo público. Esse casal, ganhando ou perdendo, sempre tem uma carta na manga para substituir qualquer peça que cair do castelo de carta deles.
Com roteiro e direção inteligentes, trilha sonora (de Jeff Beal) arrebatadora, fotografia estonteante, edição ágil, cenários e figurinos minimalistas, interpretações assombrosas e uma apresentação que conquista de cara, “House of Cards” é uma das mais importantes e melhores produções dos últimos anos. Importante, por que eleva as produções feitas para internet a um patamar nunca antes visto. E uma das melhores por um conjunto de fatores que a torna uma produção séria e de qualidade técnica inquestionável. Ainda assim, não podemos fugir do fato de que o que mais contribui para o sucesso dessa série é a história criada por Michael Dobbs. As intrigas, a manipulação, o desejo pelo poder e as dúvidas apresentadas pelo autor são o complemento para a criação de personagens incríveis. Frank é o retrato de um político existente desde os tempos mais remotos. Claire é o retrato de uma mulher que sabe se impor e se fazer necessária em um relacionamento, não importa de que natureza. Juntos, Francis e Clair Underwood são o retrato de um casal perfeito para a política mais medieval imaginável. Francis e Claire Underwood não se arrependem do que fazer. Até, por que, sempre planejam suas atitudes e sempre estão prontos para que elas se revertam em coisas positivas ou negativas. Nada surpreende esse casal por muito tempo, nada faz com que Francis ou Claire repensem em suas atitudes. No final de contas, como o próprio Francis Underwood afirma secretamente para os espectadores na segunda temporada: “A estrada pelo poder é cheia de hipocrisia e vítimas. Remorso, nunca.” E nada melhor que “House of Cards” para enfatizar essa afirmação.


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domingo, 12 de outubro de 2014

HOMEM COMUM, de Carlos Nader

A vida humana e a dualidade entre o cômico e o dramático em um documentário de mil facetas.



Titulo Original: Homem Comum
Direção, Roteiro e Produção: Carlos Nader
Elenco: Nilson de Paula, Jane e Liciane
Ano: 2013
Duração: 110 min.
Gênero: Documentário / Drama / Comédia

Em 1995, o diretor Carlos Nader iniciou um documentário despretensioso onde ele mesmo perambulava pelas vidas de caminhoneiros aleatórios. Nader conversava sobre o cotidiano com os homens e, sem mais nem menos, fazia perguntas profundas sobre a existência humana. Entretanto, o cineasta se deparou com uma ótima surpresa chamada Nilson. Um caminhoneiro como outro qualquer, o gaúcho chamou a atenção de Carlos, que desistiu da ideia de abordar vários caminhoneiros e passou a seguir a vida de Nilson, seu homem comum.
Durante os anos de 1995, 1996 e 1999, Carlos Nader acompanhou o novo amigo em toda sua rotina. Para começar seu documentário, conheceu a esposa e a filha de Nilson, adentrando na vida íntima daquela família e se tornando, por vezes, pare dela. Nader também acompanhou os serviços de Nilson como caminhoneiro, sempre registrando as ideias, preocupações e até mesmo desabafos de seu protagonista. Após muitos acontecimentos – o que incluiu perdas importantes, o crescimento da filha que já se tornou mãe e o conhecimento de novas pessoas – Carlos, entre os anos de 2010 e 2012, voltou a se tornar parte daquele clã formado, agora, por Nilson, a esposa, a filha e a neta.
Para apresentar a história de Nilson ao espectador, Carlos Nader se vale de um artifício que pode parecer um pouco estranho para algumas pessoas, mas que funciona de forma perfeita nesse longa. Alterna cenas de seu registro sobre o caminhoneiro com cenas de dois filmes: o longa dinamarquês da década de 50, Ordet, de Carl Th Breyer, e um filme realizado pelo próprio diretor para estar no documentário, Life, The Dream. As histórias são as mesmas: uma família com uma mulher grávida e um homem louco que alerta a todos a possibilidade de a morte estar próxima. A diferença é que o dinamarquês explora uma família mais simples chefiada por um patriarca, o filme de Nader retrata uma família quase aristocrática inglesa chefiada por uma mulher. As loucuras, os problemas e os enredos são muito semelhantes. Formas diferentes de contar a mesma história.


E talvez essa conclusão sobre serem as mesmas histórias seja o que mais aproxima os filmes de Homem Comum: os homens são sempre os mesmos, o que os difere são as formas que eles mesmos contam suas histórias de vida. Ao longo do documentário, Nader compara as vidas dos personagens das três histórias de forma muito sutil e intimista. Sem respeitar qualquer linearidade, as histórias, ou estórias, se cruzam em algum momento, seja pela tensão ou pelo cotidiano vivido pelos personagens. Um ponto interessante a ser comentado quando falamos sobre a relação entre Life, The Drem e Homem Comum é a forma como Nader se utiliza de animais para reforçar a banalidade da vida humana. Na ficção, um personagem com distúrbios mentais, preocupa-se com as formigas que, sem olhar para cima, realizam sua dança frenética para conseguir alimento. No documentário, os porcos que Nilson leva em seu caminhão são o alvo para mostrar um pouco de realidade triste e forte, sem julgar a imagem do protagonista.

Enquanto o filme rodava na telona, não pude deixar de olhar algumas vezes para trás e conferir a reação da plateia frente ao longa. Em momentos específicos, Nader fazia suas perguntas sobre a vida e, sem saber muito por onde ir, os personagens reagiam com surpresa e davam as respostas mais inusitadas possíveis, arrancando gargalhadas do público. O mesmo acontecia quando cenas naturais da família eram reveladas. Mas quando contava-se alguma história triste, ou quando alguma revelação inesperada era feita, o silêncio na sala era aterrador, a tensão inevitável e as expressões de espanto, pena ou medo eram certas. Tudo isso por que Nilson e sua família são pessoas como quaisquer outras, são homens e mulheres comuns que vivem todos os problemas e todas as felicidades que qualquer um de nós pode vivenciar. E, mesmo que com uma dose de humor, revelar a vida nua e crua, como ela realmente é, sempre causará espanto e balançará o mais profundo eu de cada ser humano.


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sexta-feira, 10 de outubro de 2014

DIFERENTES REALIDADES, UM SÓ PAÍS

A tarde de quinta-feira (04) terminou com filmes que expõe histórias de diferente cidades do nordeste brasileiro. Enquanto Caixa d’água: qui-lombo é esse? ressalta o passado do negro e revela a beleza da negritude de hoje, Luíses – Solrealismo Maranhense retrata a situação complicada vivida pelos moradores da capital, São Luis.



Caixa d’água: qui-lombo é esse?, de Everlene Moraes, sintetiza, em 15 minutos, a história do negro no Brasil e as dificuldades pelas quais os mesmos passaram durante o tempo em que foram escravos e pelas quais passam até hoje. A diretora acerta em optar por apresentar imagens na tela enquanto ouvem-se vozes em off de negros que revelam suas histórias. Algumas imagens, muito minimalistas, mostram os detalhes dos corpos e da pele dos negros, outras focam apenas nos rostos, nas expressões que velam mais que palavras. Outro acerto de Everlene, dessa vez muito curioso, foi optar por apresentar, também, negros com imagens projetadas em seus corpos, como fotografias e outras exclusividades que revelam a cultura negra. Ainda sobre essa cultura apresentada no filme, é importante ressaltar a citação do candomblé, do samba de roda e outras movimentações culturais. Filmado em um bairro de Aracajú, estado do Sergipe, conhecido como Morro dos Quilombos, Caixa d’água é um filme intimista, emocionante e muito inteligente que, acima de tudo, reverencia a cultura negra, apresentando negros de sangue africano que se orgulham de sua negritude de forma pra lá de respeitosa.


Luíses – Solrealismo Maranhense, de Lucian Rosa, também reverencia a cultura e o povo de sua cidade, mas pretende mais que isso: denuncia as mazelas da capital utilizando metáforas inesperadas. De início, o longa surpreende ao apresentar um ex-ator que enlouqueceu frente à cidade de São Luis – o que nos é revelado por uma voz em off – e passou a entoar palavras nas praças da cidade. Mais personagens fictícios, que representarão os Luíses do título, ou seja, o povo maranhense, surgirão. Logo começamos a perceber as denúncias ao sistema público de saúde que não cumpre com seus deverem em atender a população, depois virão críticas ao transporte público, à educação, às condições de moradia (incluindo saneamento básico) e, por fim, as críticas políticas à família Sarney, culpada, segundo o filme, por todos esses problemas. Revelam-se, também, algumas manifestações muito particulares e agradáveis para que tais problemas sejam sanados, entretanto, isso não é suficiente para dar coesão ao longa. Separadas, as cenas funcionam muito bem. Cada discurso sobre as mazelas da sociedade e as denúncias feitas aos Sarney e aos governos aliados são muito realistas. Todavia, a apelação e a não resolução do que, segundo o filme, acontece em São Luis, não conectam as partes para formar um filme único.

Caixa d’água e Luíses são filmes nordestinos que revelam realidades sobre diferentes locais dessa região tão vasta e diversificada do Brasil. Enquanto um aposta em planos minimalistas e em histórias vivenciadas por negros do mundo todo, o outro prefere se ater aos problemas locais. Ambos os filmes são felizes em suas intenções primárias: um homenageia um povo que muito sofreu (e ainda sofre), o outro denuncia mazelas locais e clama por mudanças. O primeiro emociona e conquista o espectador aos poucos, levando-o, voluntariamente, ao belo mundo da negritude e o convence de toda essa beleza. O segundo simplesmente joga os problemas na cara do espectador, procura culpados e termina sem coesão. Ambos são filmes com pretensões louváveis, porém, com diferentes resultados.


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