terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

A RESISTÊNCIA EM DOCUMENTAR

Nos últimos anos, o documentário, tipo de filme que se difere da ficção por, de alguma forma retratar a realidade, tem passado pelo benefício da dúvida em relação a uma definição que o caracterize homogeneamente. Os primeiros filmes da história do cinema, exibidos elos irmãos Lumiére, já mostravam a realidade da vida francesa sem grandes narrativas. Curtas-metragem realizados para experimentar a câmera. Desde que o precursor deste tipo de obra em longa-metragem, Nanook, of the North (Robert Flaherty, 1922), foi lançado e mudou a história do cinema documentário justamente por ser um longa-metragem, a forma de se ver e se fazer o documentário mudou.
Passando por outros importantes filmes do passado, que compreendem o início da exploração do documentário, como: Nada além das horas (Alberto Cavalcanti, 1926) Berlim – Sinfonia da metrópole (Walter Ruttmann, 1927), O homem com a câmera (Dziga Vertov, 1929), Drifters (John Grierson, 1929), O homem de Aran (Robert Flaherty, 1934); e fazendo uma breve análise de alguns filmes apresentados no CachoeiraDoc – VII Festival de Documentário de Cachoeira, em 2016, é fácil constatar que modificações ocorreram ao longo do último século para que os documentários adaptassem-se a novas exigências, a novos dispositivos, a novas realidades. Na década de 1930, a ucraniana Esfir Chub idealizou o subgênero “filme de compilação” ou “documentário de arquivo”; daí por diante, outros termos vieram para definir os diferentes tipos de documentários: “documentário experimental”, “cinema verdade”, “documentário-ensaio”, “cinema direto”, “documentário militante”, “cinema de conversa”, “filmes híbridos”, “documentário digital”, “documentário social”, “documentarismo político”, “documentário televisivo”.

Nanook, of the North (Robert Flaherty, 1922)
Cada um desses subgêneros do documentário, adaptou-se para realizar obras fílmicas que atendessem às necessidades impostas pela temática, pelo contexto histórico-social, pelas condições financeiras, pelos conceitos estéticos, pelos ideais do realizador, etc, etc, etc. Entretanto, ainda é válido questionar-se o que é o documentário, quais são suas características fundamentais e qual seu papel social e artístico. Durante o CachoeiraDoc, levantou-se outra questão pertinente: por que escolher o documentário? Para pensar sobre essas questões, além de assistir a alguns filmes no festival, procurei a opinião de cineastas e pesquisadores que já publicaram artigos onde se expõe, de uma forma ou outra, impressões sobre o documentário.
Robert Flaherty, em Como filmei Nanook, o esquimó (texto de 1922 publicado originalmente em World’s Work), e Marina Goldovskaia, em A jornada do documentário (texto de 2006, publicado originalmente como Documentary trip, em Woman with a moving camera) expõe o processo de pré-produção e produção de seus filmes. Dessa forma, podemos verificar o modos operandi que prevalece na realização de um documentário, diferenciando-o da ficção, desde o processo de realização. Antes das filmagens, afim de estabelecer um tema central e seus limites, é de bom tom que seja realizada uma pesquisa prévia, tempo hábil, também, para que as mudanças sejam realizadas na temática e nos conceitos estéticos. Geralmente, não se filma um documentário com algum roteiro prévio, apenas com indicações do que se quer mostrar. O realizador, na hora das filmagens, deve estar disposto a se render a imprevistos, compreendendo que no formato de documentário é que se tem menos controle do que se filma. Goldovskaia ainda relata o processo de montagem, onde o material filmado é revisado, assimilado e selecionado, onde horas e mais horas se tornam um produto de poucos minutos. Depois, o filme vai se moldando e é finalizado.

O homem com a câmera (Dziga Vertov, 1929)
Goldovskaia apresenta duas frases em seu texto que merecem atenção. A primeira diz respeito a sua forma de escolher um tema e de filmá-lo: “... todo filme começa com sensações”. Para ela, é o que se sente pelo tema, a forma e o que o tema toca em cada realizador que ditará como o documentário será realizado. Ela chega a dizer que só começa a filmar algo quando é tocada pela temática e se sente plenamente confortável para realizar seu filme. Isso leva a refletir, também, sobre quem está fazendo documentários, qual o perfil de quem realiza um documentário atualmente. Durante a primeira sessão de filmes na competitiva nacional do CachoeiraDoc, por exemplo, apostou-se em filmes realizados por indivíduos que vivenciam ou vivenciaram as realidades apresentadas. De alguma forma, os realizadores resolveram fazer aqueles filmes pelo fato de reconhecerem a necessidade de expor fatos. Onze (Coletivo Nigéria, Coletivo Zóio e Voz e Vez das Comunidades, 2016), Sepulcro do gato preto (Kaneda Asfixia e Frederico Moreira, 2015) e Voz das mulheres indígenas (Glicéria Tupinambá e Cristiane Pankararu, 2015) são realizados por moradores e frequentadores dos lugares, das histórias, das realidades apresentadas; Quem matou Eloá? (Lívia Perez, 2015) é de autoria de uma mulher que, mesmo não tendo vivenciado diretamente o que aconteceu a Eloá, assistiu a tudo aquilo e sofre com o machismo e a misoginia diariamente. A outra frese é “A câmera me emancipou”, que pode ser entendida, também, como os benefícios da evolução tecnológica que possibilitam que indivíduos quaisquer realizem cinema, como aconteceu com Glicéria Tupinambá, que filmou seu documentário de forma despretensiosa e sem grandes planejamentos ou aparatos tecnológicos, mas que o fez, justamente, por estar cada vez mais fácil o acesso a dispositivos de filmagem.

Sepulcro do gato preto (Kaneda Asfixia e Frederico Moreira, 2015)
 Outro exemplo é John Grierson, que define o documentário como um filme que usa “material natural”, podendo ele ter uma história contada “por si mesma”, ou induzida, planejada pelo realizador do filme. Sobre este “material natural”, será aplicada uma montagem, onde, independente da forma como o realizador trabalhará este processo, será criada uma interpretação acerca do tema explorado, como também é feito na ficção. É interessante observar, nesse contexto, os diversos tipos de “material natural” e a possibilidade de inserção de outros materiais, além, claro, do que a montagem dirá sobre o tema. Em Obra autorizada (Iago Ribeiro, 2016), por exemplo, as imagens e sons reais misturam-se a prováveis discursos previamente pensados, escritos e narrados por indivíduos. O realizador não induz o prédio a cair, não induz a prefeitura à negligência, não induz os personagens a estarem ali. Mas usa de um discurso não natural para justificar a preocupação com o prédio (é patrimônio material), influencia os transeuntes a passar por aquela rua ou não. Na montagem, escolhe apresentar o prédio, explica o que está acontecendo, interage com os personagens; salienta a importância da conservação dos patrimônios; metaforicamente, usa-os para falar de uma situação social atual muito mais complexa, forma uma opinião. Instiga o espectador de alguma forma.
Outro realizador/autor observado é o brasileiro Alberto Cavalcanti, que lançou uma nota aos jovens cineastas, onde atenta para os aspectos fílmicos (social, poético e ético), seguido de uma lista de conselhos que perpassam pela economia de conteúdo, foco no tema, justificativas de decupagem e de montagem, economia na intervenção musical, reconhecimento do ser humano como personagem em potencial e, o principal deles, experimentação, pois é dela que se cria e se vive o documentário. Sobre os aspectos fílmicos citados por Cavalcanti, é interessante observar o filme Ninguém nasce no paraíso (Alan Schvarsberg, 2015), onde é relatada a vida das mulheres grávidas que são obrigadas a deixar a ilha de Fernando de Noronha para parir no continente, sem nenhum auxílio além das passagens aéreas. No curta-metragem, o realizador expõe, critica, denuncia um fato social desconhecido da maioria e que precisa ser debatido. A forma como o realizador decide mostrar isso pelos olhos de quem sofre, as mães, mulheres grávidas, é sua forma de dar voz a cidadãs nunca ouvidas. A poesia fica a cargo da montagem, na forma como explora o discurso de cada mulher.

Obra autorizada (Iago Ribeiro, 2016)
Finalmente, em um dos textos mais interessantes do livro, A verdade de cada um (Amir Labaki, org., 2015), Jia Zhangke faz uma dedicatória onde expõe sua opinião sobre o documentário de forma simples, sucinta e honesta. O realizador chinês atenta para o fato de se observar pessoas para se fazer um filme, questionando-se sobre as diferenças e semelhanças entre quem observa e que é observado: serão o quarto, a alimentação, os objetos, as famílias, as relações de quem se observa semelhantes ou diferentes de quem é observado? O documentário, nesse contexto, nasce da curiosidade pelo outro, da proximidade ou distanciamento com o outro. Traz de volta o senso de justiça e coragem, Através do documentário, por fim, alarga-se o universo, rompe-se com a solidão, preserva-se a memória das coisas, conserva-se aquilo que se passou, resiste-se ao esquecimento.

Em comum, todos os autores/cineastas falam sobre a realidade, sobre o natural, sobre captar imagens que sejam reais. Claramente, já não é um objetivo do documentário apresentar situações totalmente reais. Nunca foi. Em Nanook, a interpretação já era vista. Em frente a câmera, também, o ser humano muda. Além disso, os planos escolhidos, a montagem, a música, tudo unido faz do documentário quase um filme de ficção. Mas que parece real de alguma forma. Em comum a muitos autores, está a opinião de que definir o que é documentário é quase impossível. Provável é cair numa bola de neve na tentativa de encontrar as características que definam um documentário e não parar de rolar nunca mais. O que Zhangke diz, parece ser mais interessante: resistir. Documentar para resistir ao passado, ao presente e ao futuro. Resistir às convenções. Resistir à corrupção. Resistir às tentações mundanas que nos afastam do que é justo. Resistir é coragem. É também, a palavra chave do VII CachoeiraDoc, onde se deu voz a mulheres, a minorias sociais, a indivíduos que lutam contra a repressão, contra o sistema caótico em que o ser humano vive. Resistir para realizar, para falar, para gritar, para informar, para existir.

Um gosto de liberdade (Marina Goldovskaia, 1991)
Outubro, 2016 

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