O segundo dia da mostra competitiva do XI Panorama Internacional Coisa de Cinema foi um dos mais aguardados de todo o evento. Segundo Cláudio Marques, coordenador do Panorama e curador dos longas das mostras nacional e internacional, a sessão ficou conhecida nos bastidores como “sessão estranheza”. E não é para menos.
Um escritório claustrofóbico. Cinco
operários. Um patrão. O homem que virou
armário, de Marcelo Ikeda, apresenta uma sociedade ultrapassada, limitada.
Aqui, não há a necessidade de se utilizar das novas tecnologias para criticar o
vício em trabalho. De forma muito inteligente, o média opta por esse espaço que
lembra as décadas passadas e o trabalho com o papel, e não com computadores, para
exemplificar claramente o trabalho operário. Com apenas uma fala durante o
filme, esse é o tipo de produto que se constrói pelo som e pelas imagens, pelos
olhares e pelos gestos dos personagens. No som, o silêncio e os “barulhos”
cotidianos do escritório que o quebram, como o relógio que anda vagarosamente,
a mulher que lixa as unhas, o homem que carimba os papéis, a mulher que conta o
número de folhas, o patrão que abre e fecha gavetas bruscamente. Nos
personagens, o suor, a indiferença, a falta de importância de uns com os outros
e uma única palavra que muda, de forma muito poética, um mundo todo.
Um casal de idosos almoça em uma cozinha
apertada. Um plano longo, carregado de realidade pelo ângulo escolhido e pelas
interpretações dos atores. Os dois intérpretes são os pais de André Novais,
diretor de Quintal, filme vencedor no
Festival de Brasília. No média, a história gira em torno desse casal e das
improbabilidades e obviedades do cotidiano de um casal de idosos. A estranheza?
Uma espécie de portal que surge nesse quintal. Um portal que representa,
metaforicamente, o quanto a vida dos idosos pode ser interessante e agitada no
cotidiano. Ao menos para eles, que, quando chegam nessa idade, percebem que são
capazes de fazer muito mais do que era esperado. Cada dia acaba se tornando uma
verdadeira aventura. Com cenas resolvidas em poucos planos (geralmente longos e
fixos), o filme mescla o documental e a ficção, tem efeitos visuais bastante
realistas e faz rir e refletir sobre a vida e o futuro.
O calor e o sol são a únicas certezas na
vida de Guima, um poeta que não consegue escrever um livro patrocinado pelo
estado da Bahia. Com uma câmera na mão, o longa da noite, Tropykaos, de Daniel Lisboa, acompanha os dias na vida desse jovem,
que perambula pela escaldante capital baiana de tênis, calça e moletom. Logo
nos primeiros planos, o espectador é lançado para o cotidiano de Guima (ainda
mais quando o filme é assistido na própria Salvador), e começa a entender sua
angústia rapidamente. O ritmo criado ao longo da trama e o som que induz o
espectador a sentir as emoções do protagonista são o grande trunfo do filme.
Entretanto, sente-se falta de mais algumas ousadias. Tropycaos é um filme que
permeia o fantástico. Guima não está apenas sofrendo com o calor, ele está,
literalmente, queimando, entrando em combustão. Momentos como quando o sol
parece queimar a tela do cinema, ou quando uma montagem frenética alterna entre
Guima e outros elementos que representam o agito e o calor nas ruas de Salvador
são as melhores sequencias do filme, mas são mais raras do que deveriam.
O roteiro, de Guilherme Sarmiento, é
claramente metafórico. O calor sentido por Guima não é causado apenas pelo sol,
o astro que queima lá em cima. O próprio calor tem muito mais a ver com os
medos, as angústias, os sentimentos do protagonista. O sol que queima, é a
pressão de um governo que espera que a arte de Guima seja feita de forma
processual. É a burguesia, representada por sua própria família, sempre
preocupada com as aparências. É a religião, que exige a escolha de um Deus, de
um demônio, de uma fé única, inabalável e incontestável. É, acima de tudo, a
intolerância que tomou conta de nossa sociedade nos últimos anos, que julga,
aponta e mata todos os dias no Brasil. Para deixar essas representações claras,
Sarmiento opta pela fantasia de forma sublime. O ar condicionado e a falta que
ele faz, sem dúvidas, incomoda mais que o necessário, chegando ao exagero. O
produto final das ideias do roteirista poupa no experimentalismo, resume a negritude
baiana em apenas um radialista e algumas representações que poderiam ser
ressaltadas ficam apenas numa metáfora sutil e muito sem graça.
Nos últimos anos, o cinema brasileiro tem
recebido um número nunca antes visto de filmes que se entregam ao mundo do
fantástico de forma muito positiva. Alguns deles, como no caso de Tropykaos, ainda há um medo de se
experimentar essa tendência. O mais interessante desses filmes é como a
fantasia é utilizada como elemento que nos faz pensar sobre como a sociedade
tem vivido e como estamos condicionados a pensamentos que são mais que
ultrapassados. Os curtas da noite são mais ousados e, apesar de o público ainda
não estar habituado a esse tipo de narrativa e de linguagem cinematográfica,
são filmes que conquistam aos poucos. O Panorama, por sorte, ainda é um
festival jovem em idade e, por isso, pronto para receber essas novas tendências
e revelar o quanto elas são significativas para o cinema brasileiro.
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