Nos últimos anos, o
documentário, tipo de filme que se difere da ficção por, de alguma forma retratar
a realidade, tem passado pelo benefício da dúvida em relação a uma definição
que o caracterize homogeneamente. Os primeiros filmes da história do cinema,
exibidos elos irmãos Lumiére, já mostravam a realidade da vida francesa sem
grandes narrativas. Curtas-metragem realizados para experimentar a câmera. Desde
que o precursor deste tipo de obra em longa-metragem, Nanook, of the North (Robert Flaherty, 1922), foi lançado e mudou a
história do cinema documentário justamente por ser um longa-metragem, a forma
de se ver e se fazer o documentário mudou.
Passando por outros
importantes filmes do passado, que compreendem o início da exploração do
documentário, como: Nada além das horas
(Alberto Cavalcanti, 1926) Berlim –
Sinfonia da metrópole (Walter Ruttmann, 1927), O homem com a câmera (Dziga Vertov, 1929), Drifters (John Grierson, 1929), O
homem de Aran (Robert Flaherty, 1934); e fazendo uma breve análise de
alguns filmes apresentados no CachoeiraDoc – VII Festival de Documentário de
Cachoeira, em 2016, é fácil constatar que modificações ocorreram ao longo do
último século para que os documentários adaptassem-se a novas exigências, a
novos dispositivos, a novas realidades. Na década de 1930, a ucraniana Esfir
Chub idealizou o subgênero “filme de compilação” ou “documentário de arquivo”;
daí por diante, outros termos vieram para definir os diferentes tipos de
documentários: “documentário experimental”, “cinema verdade”,
“documentário-ensaio”, “cinema direto”, “documentário militante”, “cinema de
conversa”, “filmes híbridos”, “documentário digital”, “documentário social”,
“documentarismo político”, “documentário televisivo”.
Nanook, of the North (Robert Flaherty, 1922) |
Cada um desses subgêneros
do documentário, adaptou-se para realizar obras fílmicas que atendessem às
necessidades impostas pela temática, pelo contexto histórico-social, pelas condições
financeiras, pelos conceitos estéticos, pelos ideais do realizador, etc, etc,
etc. Entretanto, ainda é válido questionar-se o que é o documentário, quais são
suas características fundamentais e qual seu papel social e artístico. Durante
o CachoeiraDoc, levantou-se outra questão pertinente: por que escolher o
documentário? Para pensar sobre essas questões, além de assistir a alguns
filmes no festival, procurei a opinião de cineastas e pesquisadores que já
publicaram artigos onde se expõe, de uma forma ou outra, impressões sobre o
documentário.
Robert Flaherty, em Como filmei Nanook, o esquimó (texto de
1922 publicado originalmente em World’s Work), e Marina Goldovskaia, em A jornada do documentário (texto de
2006, publicado originalmente como Documentary trip, em Woman with a moving camera) expõe o processo de pré-produção e
produção de seus filmes. Dessa forma, podemos verificar o modos operandi que prevalece na realização de um documentário,
diferenciando-o da ficção, desde o processo de realização. Antes das filmagens,
afim de estabelecer um tema central e seus limites, é de bom tom que seja
realizada uma pesquisa prévia, tempo hábil, também, para que as mudanças sejam
realizadas na temática e nos conceitos estéticos. Geralmente, não se filma um
documentário com algum roteiro prévio, apenas com indicações do que se quer
mostrar. O realizador, na hora das filmagens, deve estar disposto a se render a
imprevistos, compreendendo que no formato de documentário é que se tem menos
controle do que se filma. Goldovskaia ainda relata o processo de montagem, onde
o material filmado é revisado, assimilado e selecionado, onde horas e mais
horas se tornam um produto de poucos minutos. Depois, o filme vai se moldando e
é finalizado.
O homem com a câmera (Dziga Vertov, 1929) |
Goldovskaia apresenta
duas frases em seu texto que merecem atenção. A primeira diz respeito a sua
forma de escolher um tema e de filmá-lo: “... todo filme começa com sensações”.
Para ela, é o que se sente pelo tema, a forma e o que o tema toca em cada
realizador que ditará como o documentário será realizado. Ela chega a dizer que
só começa a filmar algo quando é tocada pela temática e se sente plenamente
confortável para realizar seu filme. Isso leva a refletir, também, sobre quem
está fazendo documentários, qual o perfil de quem realiza um documentário
atualmente. Durante a primeira sessão de filmes na competitiva nacional do
CachoeiraDoc, por exemplo, apostou-se em filmes realizados por indivíduos que
vivenciam ou vivenciaram as realidades apresentadas. De alguma forma, os
realizadores resolveram fazer aqueles filmes pelo fato de reconhecerem a
necessidade de expor fatos. Onze
(Coletivo Nigéria, Coletivo Zóio e Voz e Vez das Comunidades, 2016), Sepulcro do gato preto (Kaneda Asfixia e
Frederico Moreira, 2015) e Voz das
mulheres indígenas (Glicéria Tupinambá e Cristiane Pankararu, 2015) são
realizados por moradores e frequentadores dos lugares, das histórias, das
realidades apresentadas; Quem matou Eloá?
(Lívia Perez, 2015) é de autoria de uma mulher que, mesmo não tendo vivenciado
diretamente o que aconteceu a Eloá, assistiu a tudo aquilo e sofre com o
machismo e a misoginia diariamente. A outra frese é “A câmera me emancipou”,
que pode ser entendida, também, como os benefícios da evolução tecnológica que
possibilitam que indivíduos quaisquer realizem cinema, como aconteceu com
Glicéria Tupinambá, que filmou seu documentário de forma despretensiosa e sem
grandes planejamentos ou aparatos tecnológicos, mas que o fez, justamente, por
estar cada vez mais fácil o acesso a dispositivos de filmagem.
Sepulcro do gato preto (Kaneda Asfixia e Frederico Moreira, 2015) |
Outro exemplo é John Grierson, que define o
documentário como um filme que usa “material natural”, podendo ele ter uma
história contada “por si mesma”, ou induzida, planejada pelo realizador do
filme. Sobre este “material natural”, será aplicada uma montagem, onde,
independente da forma como o realizador trabalhará este processo, será criada
uma interpretação acerca do tema explorado, como também é feito na ficção. É
interessante observar, nesse contexto, os diversos tipos de “material natural”
e a possibilidade de inserção de outros materiais, além, claro, do que a
montagem dirá sobre o tema. Em Obra
autorizada (Iago Ribeiro, 2016), por exemplo, as imagens e sons reais
misturam-se a prováveis discursos previamente pensados, escritos e narrados por
indivíduos. O realizador não induz o prédio a cair, não induz a prefeitura à
negligência, não induz os personagens a estarem ali. Mas usa de um discurso não
natural para justificar a preocupação com o prédio (é patrimônio material),
influencia os transeuntes a passar por aquela rua ou não. Na montagem, escolhe
apresentar o prédio, explica o que está acontecendo, interage com os
personagens; salienta a importância da conservação dos patrimônios;
metaforicamente, usa-os para falar de uma situação social atual muito mais
complexa, forma uma opinião. Instiga o espectador de alguma forma.
Outro realizador/autor
observado é o brasileiro Alberto Cavalcanti, que lançou uma nota aos jovens
cineastas, onde atenta para os aspectos fílmicos (social, poético e ético),
seguido de uma lista de conselhos que perpassam pela economia de conteúdo, foco
no tema, justificativas de decupagem e de montagem, economia na intervenção
musical, reconhecimento do ser humano como personagem em potencial e, o
principal deles, experimentação, pois é dela que se cria e se vive o
documentário. Sobre os aspectos fílmicos citados por Cavalcanti, é interessante
observar o filme Ninguém nasce no paraíso
(Alan Schvarsberg, 2015), onde é relatada a vida das mulheres grávidas que são
obrigadas a deixar a ilha de Fernando de Noronha para parir no continente, sem
nenhum auxílio além das passagens aéreas. No curta-metragem, o realizador
expõe, critica, denuncia um fato social desconhecido da maioria e que precisa
ser debatido. A forma como o realizador decide mostrar isso pelos olhos de quem
sofre, as mães, mulheres grávidas, é sua forma de dar voz a cidadãs nunca
ouvidas. A poesia fica a cargo da montagem, na forma como explora o discurso de
cada mulher.
Obra autorizada (Iago Ribeiro, 2016) |
Finalmente, em um dos
textos mais interessantes do livro, A verdade
de cada um (Amir Labaki, org., 2015), Jia Zhangke faz uma dedicatória onde
expõe sua opinião sobre o documentário de forma simples, sucinta e honesta. O
realizador chinês atenta para o fato de se observar pessoas para se fazer um
filme, questionando-se sobre as diferenças e semelhanças entre quem observa e
que é observado: serão o quarto, a alimentação, os objetos, as famílias, as
relações de quem se observa semelhantes ou diferentes de quem é observado? O
documentário, nesse contexto, nasce da curiosidade pelo outro, da proximidade
ou distanciamento com o outro. Traz de volta o senso de justiça e coragem, Através
do documentário, por fim, alarga-se o universo, rompe-se com a solidão,
preserva-se a memória das coisas, conserva-se aquilo que se passou, resiste-se
ao esquecimento.
Em comum, todos os
autores/cineastas falam sobre a realidade, sobre o natural, sobre captar
imagens que sejam reais. Claramente, já não é um objetivo do documentário
apresentar situações totalmente reais. Nunca foi. Em Nanook, a interpretação já era vista. Em frente a câmera, também, o
ser humano muda. Além disso, os planos escolhidos, a montagem, a música, tudo
unido faz do documentário quase um filme de ficção. Mas que parece real de
alguma forma. Em comum a muitos autores, está a opinião de que definir o que é
documentário é quase impossível. Provável é cair numa bola de neve na tentativa
de encontrar as características que definam um documentário e não parar de
rolar nunca mais. O que Zhangke diz, parece ser mais interessante: resistir.
Documentar para resistir ao passado, ao presente e ao futuro. Resistir às
convenções. Resistir à corrupção. Resistir às tentações mundanas que nos
afastam do que é justo. Resistir é coragem. É também, a palavra chave do VII
CachoeiraDoc, onde se deu voz a mulheres, a minorias sociais, a indivíduos que
lutam contra a repressão, contra o sistema caótico em que o ser humano vive.
Resistir para realizar, para falar, para gritar, para informar, para existir.
Um gosto de liberdade (Marina Goldovskaia, 1991) |
Outubro, 2016