domingo, 14 de setembro de 2014

AS VIDAS DOS HOMENS

Durante os dias 2 e 7 de setembro, a cidade de Cachoeira, Bahia, sediou o CachoeiraDoc, o Festival de Documentários da cidade. Com a apresentação de quase 40 produções, dentre mostras especiais e competitiva, o evento contou com a participação dos realizadores dos filmes, dos alunos e professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, da população cachoeirana e de profissionais de diversas áreas.



No final da tarde durante a noite de sexta-feira (05) foram apresentados o curta La Llamada e os longas Aprender a ler para ensinar seus camaradas e A vizinhança do tigre. Diferentes são os lugares apresentados por esses três filmes muito singulares, diferentes são, também, as realidades dos personagens que surgem durante as histórias, porém, todos possuem uma coisa em comum: o homem. Nesse contexto, La llamada revela um pouco o dia-a-dia de um cubano revolucionário de 87 anos muito convicto de seus ideias e pouco aberto para o novo; Aprender a ler para ensinar meus camaradas acompanha a visita de dois africanos a Bahia; A vizinhança do tigre, por fim, traz as histórias de jovens garotos moradores da periferia de Contagem.
La llamada, de Gustavo Vinagre, foi realizado em uma pequena vila em Cuba. Outrora, o local foi destinado a operários de uma fábrica que, hoje, está fechada. A fábrica deixou o local, os moradores continuam lá. Lázaro Escarze, um comerciante proprietário de uma pequena venda, foi o escolhido por Gustavo para representar esse povo. Segundo o próprio diretor, ele se propôs a filmar a primeira pessoa que encontrasse. Assim, Gustavo permaneceu 40 dias convivendo com o protagonista e, depois, em três dias, realizou o curta de 19 minutos em preto e branco. Lázaro passa o dia enclausurado pelas grades que protegem sua venda e, com a ajuda de um jovem, atende seus clientes por uma pequena abertura. Agora, Lázaro terá, pela primeira vez na vida, um telefone instalado em sua casa. Quais serão suas reações com essa nova tecnologia? Segundo Vinagre, Lázaro se destaca pela maneira natural com a qual toma suas decisões e pela capacidade de colocar uma ideologia acima de interesses pessoais, e as escolhas acerca do tal telefone não tomarão caminhos diferentes.  A fotografia lembra que Lázaro é um homem das antigas. As grades remetem ao enclausuro ao qual o próprio homem se propõe para poder viver em seu sistema muito próprio.


O título de Aprender a ler para ensinar meus camaradas, de João Guerra, é baseado em um “ditado” angolano que diz respeito às informações que um homem deveria coletar sobre o espaço a ser explorado para ensinar seus irmãos sobre aquilo. Guerra traz os dois músicos da angola para que, juntos de dezenas de nomes de grande importância cultural para o Brasil, possam explorar e aprender um pouco sobre a cultura baiana, baseada na cultura africana. Guerra inicia o longa em Luanda, apresentando a vida pessoal dos artistas e conhecendo suas famílias, ouvindo histórias e aprendendo um pouco sobre a África. Depois, a dupla vem ao Brasil e confere tudo o que o povo afro-brasileiro pôde construir a partir de suas origens. De forma intimista, o diretor recolheu depoimentos de pessoas na África e no Brasil, grandes nomes para a vida dos músicos e grandes personalidades da cultura brasileira, e os misturou com canções muito específicas sobre o tema apresentado.


Depois de Luanda, João Guerra vem a Cachoeira e explora suas belezas naturais e arquitetônicas, exaltando a cultura e a importância do município, que já foi um dos mais importantes economicamente para o país e ainda é uma das maiores referências nacionais em âmbito cultural e religioso. Na cidade, um dos personagens relembra o fato de os africanos terem a necessidade, quando chegaram ao Brasil, de se agruparem para sobreviverem às mudanças encontradas depois de serem obrigados a deixar sua terra de origem. Com tal agrupamento, segundo o personagem, foi que as culturas começaram a se fundir e formar a tão vasta e bela cultura negra no país. Aqui, os músicos angolanos encontram outras pessoas que vivem e amam a música e que estão empenhadas em não deixar os costumes criados pelos antepassados morrer. E talvez seja essa união de amantes da música e de sua história que componha a maior beleza desse filme. O problema de Guerra é que toda essa beleza é mostrada, por ele (não pelos personagens), de forma muito comercial, como se ele quisesse vender a Bahia como um paraíso perdido no leste brasileiro. A história por trás dos fatos é bela. A intenção dos personagens ao se engajaram no projeto é maravilhosa. A intenção de Guerra é, no mínimo, suspeita.
A vizinhança do tigre, de Affonso Uchoa, deixa de lado personagens mais velhos e que tenham uma carga história inimaginável, e dá espaço aos jovens da periferia: Juninho, Menor, Neguinho, Adilson e Eldo, que vivem entre a cruz e a espada ao serem obrigados a escolher caminhos muito distintos: o trabalho ou a diversão. A realidade de todos é muito simples e as famílias pouco ajudam na formação consciente desses jovens. Aos poucos conhecemos o cotidiano deles e concluímos que a máxima de suas vidas é estarem vivendo num sistema capitalista e individualista, onde nada importa que não seja o lucro. Para os jovens é ainda pior: o termômetro para saber o quanto se viveu, é o número de cicatrizes originadas por tiros pelos quais se foi atingido.


Há uma grande possibilidade de se assistir a esse filme e recordar um pouco Cidade de Deus e Cidade dos Homens, ambos retratos de jovens que vivem em favelas do Rio de Janeiro. Aqui, entretanto, Uchoa torna tudo mais particular à medida que não se importa em mostrar muitas histórias ou outros personagens além dos citados anteriormente. A forma como o diretor conta essas histórias chega a parecer uma ficção muito bem inventada, mas os ângulos escolhidos por ele e a forma como mostra o espaço em que os jovens vivem nos lembra de que tudo aquilo é, infelizmente, muito real. Apesar de a montagem do filme ser um pouco lenta, fazendo-o se tornar cansativo em alguns momentos, a fotografia muito realista é um deleite para os olhos do espectador.

Lázaro, de La llamada, é o retrato de um povo que já sofreu muito e aprendeu com toda sua história, mas que tem certa resistência em abandonar o passado. Aprender a ler, apesar de comercial, é uma troca mútua: Guerra apresenta a cultura africana no início do filme e, depois, é apresentada aos angolanos a cultura brasileira. O tigre do título de Vizinhança do tigre é, claramente, uma referência a tudo o que os jovens tem em seu interior, a vizinhança, portanto, é tudo o que está em volta deles. E se Gustavo Vinagre é capaz de fazer o público compreender que Lázaro é esse retrato do homem idoso convicto em tudo o que fez e faz, se Guerra é capaz de fazer com que o espectador, assim como seus personagens, aprendam um pouco sobre as culturas tão significativas vistas em seu filme, e se Uchoa é capaz de convencer o público de que o sistema ao qual os garotos estão inseridos é errado e ultrapassado, então, ao menos para o espectador, esses filmes valem a pena.

Após a apresentação de La Lamada e Aprender a ler para ensinar meus camaradas, Gustavo Vinagre e João Guerra falaram um pouco sobre os filmes e responderam perguntas do público. Depois, um grupo da velha guarda do samba começou uma apresentação memorável no Cine Theatro Cachoeirano e fechou os trabalhos na praça 25 de Junho.
(Fotos de Léo Conceição)


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