Durante os dias 2 e 7 de setembro, a cidade de Cachoeira, Bahia, sediou o CachoeiraDoc, o Festival de Documentários da cidade. Com a apresentação de quase 40 produções, dentre mostras especiais e competitiva, o evento contou com a participação dos realizadores dos filmes, dos alunos e professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, da população cachoeirana e de profissionais de diversas áreas.
No final da tarde durante a noite de
sexta-feira (05) foram apresentados o curta La Llamada e os longas Aprender a
ler para ensinar seus camaradas e A vizinhança do tigre. Diferentes são os
lugares apresentados por esses três filmes muito singulares, diferentes são,
também, as realidades dos personagens que surgem durante as histórias, porém,
todos possuem uma coisa em comum: o homem. Nesse contexto, La llamada revela um
pouco o dia-a-dia de um cubano revolucionário de 87 anos muito convicto de seus
ideias e pouco aberto para o novo; Aprender a ler para ensinar meus camaradas
acompanha a visita de dois africanos a Bahia; A vizinhança do tigre, por fim,
traz as histórias de jovens garotos moradores da periferia de Contagem.
La llamada, de Gustavo Vinagre, foi
realizado em uma pequena vila em Cuba. Outrora, o local foi destinado a
operários de uma fábrica que, hoje, está fechada. A fábrica deixou o local, os
moradores continuam lá. Lázaro Escarze, um comerciante proprietário de uma
pequena venda, foi o escolhido por Gustavo para representar esse povo. Segundo
o próprio diretor, ele se propôs a filmar a primeira pessoa que encontrasse.
Assim, Gustavo permaneceu 40 dias convivendo com o protagonista e, depois, em
três dias, realizou o curta de 19 minutos em preto e branco. Lázaro passa o dia
enclausurado pelas grades que protegem sua venda e, com a ajuda de um jovem,
atende seus clientes por uma pequena abertura. Agora, Lázaro terá, pela
primeira vez na vida, um telefone instalado em sua casa. Quais serão suas
reações com essa nova tecnologia? Segundo Vinagre, Lázaro se destaca pela
maneira natural com a qual toma suas decisões e pela capacidade de colocar uma
ideologia acima de interesses pessoais, e as escolhas acerca do tal telefone
não tomarão caminhos diferentes. A
fotografia lembra que Lázaro é um homem das antigas. As grades remetem ao
enclausuro ao qual o próprio homem se propõe para poder viver em seu sistema
muito próprio.
O título de Aprender a ler para ensinar
meus camaradas, de João Guerra, é baseado em um “ditado” angolano que diz
respeito às informações que um homem deveria coletar sobre o espaço a ser
explorado para ensinar seus irmãos sobre aquilo. Guerra traz os dois músicos da
angola para que, juntos de dezenas de nomes de grande importância cultural para
o Brasil, possam explorar e aprender um pouco sobre a cultura baiana, baseada
na cultura africana. Guerra inicia o longa em Luanda, apresentando a vida
pessoal dos artistas e conhecendo suas famílias, ouvindo histórias e aprendendo
um pouco sobre a África. Depois, a dupla vem ao Brasil e confere tudo o que o
povo afro-brasileiro pôde construir a partir de suas origens. De forma
intimista, o diretor recolheu depoimentos de pessoas na África e no Brasil,
grandes nomes para a vida dos músicos e grandes personalidades da cultura
brasileira, e os misturou com canções muito específicas sobre o tema apresentado.
Depois de Luanda, João Guerra vem a
Cachoeira e explora suas belezas naturais e arquitetônicas, exaltando a cultura
e a importância do município, que já foi um dos mais importantes economicamente
para o país e ainda é uma das maiores referências nacionais em âmbito cultural
e religioso. Na cidade, um dos personagens relembra o fato de os africanos
terem a necessidade, quando chegaram ao Brasil, de se agruparem para
sobreviverem às mudanças encontradas depois de serem obrigados a deixar sua
terra de origem. Com tal agrupamento, segundo o personagem, foi que as culturas
começaram a se fundir e formar a tão vasta e bela cultura negra no país. Aqui,
os músicos angolanos encontram outras pessoas que vivem e amam a música e que
estão empenhadas em não deixar os costumes criados pelos antepassados morrer. E
talvez seja essa união de amantes da música e de sua história que componha a
maior beleza desse filme. O problema de Guerra é que toda essa beleza é
mostrada, por ele (não pelos personagens), de forma muito comercial, como se
ele quisesse vender a Bahia como um paraíso perdido no leste brasileiro. A
história por trás dos fatos é bela. A intenção dos personagens ao se engajaram
no projeto é maravilhosa. A intenção de Guerra é, no mínimo, suspeita.
A vizinhança do tigre, de Affonso Uchoa,
deixa de lado personagens mais velhos e que tenham uma carga história
inimaginável, e dá espaço aos jovens da periferia: Juninho, Menor, Neguinho,
Adilson e Eldo, que vivem entre a cruz e a espada ao serem obrigados a escolher
caminhos muito distintos: o trabalho ou a diversão. A realidade de todos é
muito simples e as famílias pouco ajudam na formação consciente desses jovens.
Aos poucos conhecemos o cotidiano deles e concluímos que a máxima de suas vidas
é estarem vivendo num sistema capitalista e individualista, onde nada importa
que não seja o lucro. Para os jovens é ainda pior: o termômetro para saber o
quanto se viveu, é o número de cicatrizes originadas por tiros pelos quais se
foi atingido.
Há uma grande possibilidade de se
assistir a esse filme e recordar um pouco Cidade de Deus e Cidade dos Homens,
ambos retratos de jovens que vivem em favelas do Rio de Janeiro. Aqui,
entretanto, Uchoa torna tudo mais particular à medida que não se importa em
mostrar muitas histórias ou outros personagens além dos citados anteriormente.
A forma como o diretor conta essas histórias chega a parecer uma ficção muito
bem inventada, mas os ângulos escolhidos por ele e a forma como mostra o espaço
em que os jovens vivem nos lembra de que tudo aquilo é, infelizmente, muito
real. Apesar de a montagem do filme ser um pouco lenta, fazendo-o se tornar
cansativo em alguns momentos, a fotografia muito realista é um deleite para os
olhos do espectador.
Lázaro, de La llamada, é o retrato de um
povo que já sofreu muito e aprendeu com toda sua história, mas que tem certa
resistência em abandonar o passado. Aprender a ler, apesar de comercial, é uma
troca mútua: Guerra apresenta a cultura africana no início do filme e, depois,
é apresentada aos angolanos a cultura brasileira. O tigre do título de
Vizinhança do tigre é, claramente, uma referência a tudo o que os jovens tem em
seu interior, a vizinhança, portanto, é tudo o que está em volta deles. E se
Gustavo Vinagre é capaz de fazer o público compreender que Lázaro é esse retrato
do homem idoso convicto em tudo o que fez e faz, se Guerra é capaz de fazer com
que o espectador, assim como seus personagens, aprendam um pouco sobre as
culturas tão significativas vistas em seu filme, e se Uchoa é capaz de
convencer o público de que o sistema ao qual os garotos estão inseridos é
errado e ultrapassado, então, ao menos para o espectador, esses filmes valem a
pena.
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