quinta-feira, 23 de julho de 2015

A PRESENÇA DA MULHER NEGRA NO CINEMA

Quando fui convidada a escrever sobre a presença das mulheres negras no cinema, automaticamente me veio uma pergunta à cabeça: existem mulheres negras atrás das câmeras? A primeira resposta que me surgiu foi uma negativa: não, não existem. Senti aí um desafio pessoal, pois das duas uma: ou eu tenho muito o que aprender sobre cinema e a presença de negros (e mulheres!) ou essa segregação existe mesmo e não há como negar. Para meu espanto, as duas coisas são verídicas e aqui fica meu empenho - e desejo - para que elas mudem (e já!).
Mas como escrever sobre as negras no cinema se não consigo encontrar uma referência - e representatividade - atrás das câmeras? O que me resta é ir para a frente delas e falar sobre duas mulheres negras pioneiras no cinema: a norte-americana (ou afro-americana) Hattie MacDaniel e a brasileira Ruth de Souza. Lembrando que o 25 de julho celebra o dia da mulher afro-latino-americana e caribenha, mas como acredito que uma coisa leva à outra e a história dessas duas mulheres se assemelham muito resolvi utilizar Hattie MacDaniel mesmo assim.
A atriz americana Hattiel MacDaniel
Provavelmente o nome de MacDaniel não seja tão lembrado como deveria, ao contrário do nome de outros atores do filme mais expressivo de sua carreira: ...E o Vento Levou (1939). No papel de "Mammy" a atriz foi a primeira negra a ganhar um Oscar (como atriz coadjuvante) e a primeira negra convidada a participar da cerimônia (os demais negros participavam como empregados, faxineiros etc). Talvez hoje em dia isso pareça um absurdo ou algo superado mas, vale lembrar que, depois dela somente 6 atrizes – Whoopi Goldberg por Ghost: Do Outro Lado da Vida (1990), Halle Berry por A Última Ceia (2001), Jennifer Hudson por Dreamgirls: Em Busca de um Sonho (2006), Mo’Nique por Preciosa: Uma História de Esperança (2009), Octavia Spencer por Histórias Cruzadas (2011) e Lupita Nyong’o por 12 Anos de Escravidão (2013) - ganharam prêmios da Academia e, a primeira foi somente em 1990, passados 50 anos da premiação de Hattie.
Apesar de se destacar em outras produções, Hattie foi muito criticada pela própria comunidade negra ao aceitar fazer sempre o mesmo tipo de papel, a empregada desbocada e extrovertida. Em uma entrevista ela chegou a declarar: "Por que devo reclamar enquanto ganho 700 dólares por semana sendo uma empregada nas telas? Se não fosse uma nas telas, ganharia sete dólares por semana sendo uma de verdade." É exatamente aí que a ficção se mistura com a realidade, pois quando ela não conseguia papel em filmes tinha de trabalhar como empregada ou cozinheira para se manter.
Interessante notar como no Brasil a figura da “Mammy” foi retratada pelo escritor Monteiro Lobato (entre 1920 e 1940 com a série de livros Sítio do Pica Pau Amarelo) e a sua “Tia Nastácia”: uma mulher negra que trabalha em uma casa de família rica, com pouca instrução, solteira e sempre solícita.  Demonstrando claramente resquícios dos tempos da escravatura, onde algumas escravas negras trabalhavam como empregadas e/ou amas de leite dos filhos de seus patrões. No filme ... E o Vento Levou, a personagem de Hattie é uma mistura de tudo isso, salvo o fato de retratar o tempo da Guerra Civil Americana e a condição de escrava da personagem.
Hattie foi a primeira negra a cantar no rádio (em 1915), seu pai e seus avós foram escravos e, apesar das críticas recebidas durante sua carreira, ela acreditava que não trabalhava para si mesma, mas para as futuras gerações de atores afro-americanos. Ela foi referência nos discursos de George Clooney e Mo’Nique quando estes receberam o Oscar.
Atriz brasileira Ruth de Souza
Já a brasileira Ruth de Souza, com cerca de 70 anos de carreira, ajudou a fundar o TEN (Teatro Experimental do Negro), grupo pioneiro na participação dos negros nas artes cênicas brasileiras. Sendo indicada anos mais tarde ao prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza pelo filme Sinhá Moça (1953) e tendo trabalhado na Atlântida e na Vera Cruz. Ruth ganhou uma bolsa de estudos para estudar teatro na Universidade de Harvard (em Washington) e na Academia Nacional do Teatro Americano (em Nova York). Estreou no cinema em 1948, no filme Terra Violenta e depois não parou mais de atuar no cinema, TV e teatro. Foi a primeira atriz negra a protagonizar uma novela - A Cabana do Pai Tomás (1969/70) - na TV Globo, apesar das críticas que recebeu (o seu par romântico era um ator branco que se pintava de negro) Ruth ainda integra o elenco da emissora e marca presença em obras de cineastas como Walter Salles, Aluísio Abranches e Zito Araújo.
Ruth foi a primeira atriz negra a se apresentar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro (1945), fez mais de 40 novelas, cerca de 33 filmes e dezenas de peças. Afirmou certa vez que todos riram quando ela, ainda jovem, decidiu ser atriz. Foi sua persistência que a permitiu abrir as portas para os artistas negros. Diz não ter sofrido preconceito, mas afirma que a dramaturgia brasileira precisa ter mais respeito aos negros.
Essas duas mulheres com o seu pioneirismo no cinema (e no audiovisual como um todo) são uma pequena amostra de como a participação das mulheres negras no cinema tem que se ampliar cada vez mais e mais. Hattie e Ruth são exemplos de como o talento pode superar o racismo, ambas insistiram e acreditaram na sua arte e conquistaram um lugar que lhes é de direito. Apesar de não serem lembradas frequentemente devem ser exemplos para uma mudança necessária e urgente no cinema brasileiro e internacional: o protagonismo da mulher negra nas produções. Em frente, e atrás das câmeras.
É desanimador pensar que - mais especificamente no Brasil - uma parte expressiva da população vem sendo minimamente representada e, em sua grande maioria, em papéis estereotipados e secundários, como: a empregada, a mulata gostosa ou a moradora de "comunidade".  E para piorar a situação, segundo pesquisa da Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa) as roteiristas e diretoras negras brasileiras praticamente não existem. Talvez isto explique a continuidade desses estereótipos e possa servir como alerta para que a mulher negra conquiste seu espaço escrevendo, atuando e dirigindo a si mesma e em seu espaço.
Um passo importante - e que celebra o 25 de julho - foi dado pelo Festival da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha. Na edição deste ano será discutido o cinema negro e serão exibidos curtas e longas metragens com a mesma temática. É uma gota no oceano, mas ela há de se multiplicar cada vez mais.

Referências:
http://www.afrolatinas.com.br/
http://gemaa.iesp.uerj.br/
http://www.imdb.com/
http://www.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes/acervo/atores-do-brasil/biografia-de-ruth-de-souza/
http://www.ebc.com.br/cultura/2014/07/pesquisa-revela-que-mulheres-negras-estao-fora-do-cinema-nacional

Danny Evans é estudante de Cinema e Audiovisual na UFF/RJ, negra e periférica. Paulistana do Grajaú, apaixonada por Chaves e filmes de gângsteres. Não dispensa um churrasco e uma cerveja gelada, mas sabe que isso não é tudo na vida.

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