What Happened, Nina Simone?, é um documentário simples e conciso que deixa de lado todo o resto e foca apenas na vida da cantora negra norte-americana, apresentando-a como uma mulher além de seu tempo, que sacrificou a vida por ela mesma, em busca da liberdade e da felicidade.
Eunice Waymon nasceu em 21 de fevereiro de
1933, em Tryon, Carolina do Norte, Estados Unidos. Era mulher, negra e pobre
num país machista, segregado e extremamente capitalista. Sua mãe era pregadora
em uma igreja e, aos 4 anos, Eunice começou a aprender a tocar piano. Pouco
depois, teve a sorte de ser vista por uma professora branca de música que
começou a lhe dar aulas. Sendo obrigada a ir na casa da professora, em um
bairro branco, Eunice já provou do isolamento e de como a sociedade podia ser
cruel. O sonho de sua professora, e o sonho de Eunice, era que ela se tornasse
a primeira pianista profissional negra. Eunice, com a ajuda da professora,
estudou e chegou a cursar um ano e meio na Julliard School. Ela tentou uma
bolsa em uma universidade, mas foi recusada. A falta de dinheiro fez a jovem
começar a tocar em um bar, mas o dono do local a advertiu: ou ela cantava
também, ou perderia o emprego. Assim, nasceu Nina Simone (o Nina vinha do
apelido dado por um namorado, niña –
pequena em espanhol –, e o Simone, da atriz francesa Simone Signoret). A
mudança de nome veio para que a família não descobrisse que Eunice estava
tocando nos bares músicas não consideradas de Deus.
Nina Simone cantando I Loves You Porgy, em 1960
Nina Simone logo foi vista e poucos anos
depois começou a ser ouvida em todas as rádios dos EUA graças a canção I Loves You Porgy. Logo depois,
conheceu, se apaixonou e se casou com Andrew Stroud, policial que se tornou seu
empresário. Apesar de tornar Nina uma estrela, Andy era abusivo e a espancava.
Com ele, Nina teve sua única filha, Lisa. Com temperamento forte e opiniões
muito próprias, a cantora trabalhava o tempo todo e começou a ficar estressada
e muito agressiva. Na metade da década de 1964, Nina Simone escreveu e entoou Mississipi Goddam, música que denunciava
o absurdo relacionado à segregação e era uma espécie de homenagem às crianças
negras assassinadas dentro de uma igreja nos EUA. Nina, então, começou a se
envolver e se entregar ao ativismo, que lutava pelos direitos civis, fazendo
shows onde cantava músicas muito políticas e pedindo por atitudes mais
agressivas. Após a morte de Martin Luther King, Nina cansou dos EUA e foi morar
na África, deixando carreira, marido e filha para trás. Apesar de feliz, Nina
se tornou mais agressiva e Lisa não aguentou morar com a mãe quando teve a chance.
Quando o dinheiro acabou, tentou uma nova vida na Europa na década de 1970,
quando foi diagnosticada com transtorno bipolar. Apesar da demora, em 1987,
Nina estabilizou sua carreira novamente. Em 1993, gravou seu último disco e em
21 de abril de 2003, Nina Simone morreu em decorrência de um câncer de mama.
Com história de vida difícil para ser
resumida, Nina Simone volta à mídia internacional devido ao documentário recém
lançado pela Netflix, promissora empresa de streaming (um fluxo de mídia que permite
a distribuição de dados através da rede mundial de computadores, a internet). What Happened, Nina Simone? é dirigido
por Liz Garbus, conhecida por dirigir e produzir inúmeros filmes do gênero, e conta
essa história fascinante dividindo a vida de Nina em pessoal e profissional, e
apresentando-as de forma paralela, mas de formas muito distintas, misturando-as
apenas quando necessário. Nina, entretanto, não parecia ser assim. A partir do
momento em que Eunice Waymon se tornou Nina Simone, assumiu um papel só, no
palco, ou em casa. Para apresentar a vida de Nina, Garbus utiliza de recursos
muito comuns nesse tipo de filme: arquivos (vídeos, áudios, fotografias,
manuscritos) de quando Nina estava viva e depoimentos de pessoas que conheceram
a cantora mais de perto, tornando o longa muito intimista. O que impressiona é
a quantidade de arquivos interessantes e bem conservados, desde entrevistas
famosas até shows inesquecíveis.
Nina Simone cantando Mississipi Goddam,
primeiro sucesso na luta dos direitos civis, em 1963
Para contar essa história, Garbus divide a
vida de Nina fazendo uma pequena introdução até o começo de sua carreira como
cantora (quando mudou de nome). Depois, conta tudo o que se passou na carreira
de Nina durante dos dez anos inicias – apresentando sucessos como Destiny, Little Liza Jane, I Loves You
Porgy, Where I Can go Without You, Love
me our Leve me, Feeling Good, I Put a
Spell on You e sua apresentação no Carnegie Hall em 1963. Sobre a vida
pessoal no período, a diretora revela, sobretudo, o relacionamento complicado
com Andy e o nascimento da filha. Depois, vem o período em que Nina começou a
se envolver com o ativismo, com músicas como Mississipi Goddam, Old Jim
Crow, Work Song, Ain’t Got No, I Got Life, Strange Fruit,
Four Woman, Why? (The King of the Love is Dead), To be Young, Grifted and Black – uma das músicas
símbolo dos direitos civis – e sua defesa muito agressiva em relação aos
brancos – Nina discordava da pacificidade do Dr. King, e acreditava que os
negros deviam pegar em armas contra brancos. Nessa época, Nina se envolve tanto
com o ativismo que deixa a família e a carreira de lado. Finalmente, Garbus
reúne os períodos em que Nina morou na África e na Europa, provando que, apesar
dos trancos e barrancos, Nina teve um final mais tranquilo.
What
Happened, Nina Simone? Também tem alguns defeitos. Muitas coisas que
poderiam ser ditas são deixadas de lado, justamente pela ânsia de se fazer um
filme que fala sobre Nina, ou sobre a visão que Nina passou em suas entrevistas
e que os amigos de Nina tinham da cantora. Um dos pontos mais negativos é a
forma como o filme trata Andy, que dá vários depoimentos para o longa, mas sequer
parece reconhecer arrependimento por ter espancado a mulher – provavelmente por
que ele acredita que ela tenha gostado de ter sido espancada, como o filme
chega a sugerir. A vida pessoal da atriz, nesse contexto, é muitas vezes deixada
de lado e não se explora as dificuldades que a artista vivia dentro da própria
casa. Ou dentro da própria cabeça. A fase em que Nina Simone começou a ser
ativamente política não é retratada de forma concreta no filme, a impressão é
de que a artista não sabia muito bem do que estava falando e o que estava
fazendo. A posição de Nina de que os negros deviam pegar em armas não é
relacionada ao envolvimento de Nina com os Panteras Negras, nem com nenhum outro
grupo tão forte quanto. E a relação entre Nina e a política, a partir do
momento que ela deixa os EUA, parece desaparecer, o que, de fato, não ocorreu,
já que ela continuou participando da política na África.
I Put a Spell on You, sucesso de 1965
Todas as histórias imagináveis já foram
contadas no cinema. O que difere um filme do outro, é a forma como a história
será contada. Nessa verdade, incluem-se, inclusive, histórias de mulheres,
negras, pobres e sofredoras. Mulheres abusadas por maridos e pela sociedade.
Mas ainda não foram contadas histórias suficientes sobre elas para que a
sociedade entenda como mulheres negras foram, e ainda são, subjugadas e
sufocadas. Nina Simone possui uma história de vida fascinante. Uma história
sobre uma mulher que não viveu na época errada, e sim, viveu além de seu tempo.
Uma história que merece ser contada. A forma como ela é apresentada nessa
deliciosa produção Netflix é simples, sem muito sensacionalismo e acompanha o
que se passava na cabeça de Nina – ou pelo menos aquilo que se acreditava passar.
O filme, é sobre a cantora e sobre a forma como ela parecia ver o mundo e como levava
sua vida a partir daquilo que ela falava em suas entrevistas e do que os amigos
e conhecidos alegam. Apesar da divisão que separa demasiadamente as vidas
pessoal e profissional, a divisão feita por Garbus citada no parágrafo
anterior, mostra tudo o que Nina vivia e a forma como ela via tudo à sua volta.
Nada no documentário é sobre outras pessoas – nem mesmo quando o filme traz a
época do ativismo, já que o que se mostra era a ação e influência de Nina (mesmo
que, por vezes, superficial) e os reflexos da luta pelos direitos civis na vida
da cantora.
Nina Simone cantando To be Young, Grifted and Black –
uma das músicas símbolo dos direitos civis - em 1970
A vida de Nina Simone, sem dúvida, era uma
sequência interminável de sacrifícios. Enquanto vivia nos EUA, Nina sacrificava
sua vida pessoal, seu relacionamento com Andy e sua relação com sua filha pela
carreira. Quando o relacionamento com o marido se tornou abusivo e inaceitável,
passou a sacrificar sua própria integridade física e psíquica por um amor
inexplicável. Ao se tornar uma ativista, Nina sacrificou sua própria carreira
ao cantar sucessos políticos que não eram aceitos em grandes shows. Quando
resolveu mudar para a África, sacrificou a convivência com amigos e com a filha
e, novamente, a carreira para tentar se encontrar e, consequentemente,
finalmente ser feliz. Ao retomar sua carreira na Europa, sacrificou e arriscou
sua saúde quando começou a tomar remédios para controlar sua bipolaridade, que
podiam comprometer seus movimentos e reflexos. E se a pergunta que fica é “o
que aconteceu, Nina Simone?”, como sugere o título do filme, a cantora
responderia que o que aconteceu foi ter vivido livremente, verdadeiramente. Ou, simplesmente riria e não responderia nada, por que Nina não seria obrigada
a responder a qualquer pergunta. Infelizmente, Nina não está mais aqui para amarrar
as inúmeras pontas soltas de sua vida.
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