quarta-feira, 19 de junho de 2013

065. CIDADE DE DEUS, de Fernando Meirelles e Kátia Lund

“Cidade de Deus” explora, de forma real e sem pudores, a terrível vida de quem mora em uma favela, trazendo um filme cheio de surpresas e qualidade, mostrando a verdadeira face de uma parcela do povo brasileiro.
Nota: DEZ


Título Original: Cidade de Deus
Direção: Fernando Meirelles e Kátia Lund
Elenco: Alexandre Rodrigues, Leandro Firmino, Phellipe Haagensen, Douglas Silva, Jonathan Haagensen, Matheus Natchtergaele, Seu Jorge, Jefechander Suplino, Alice Braga, Emerson Gomes, Edson Oliveira, Michel de Souza,
Produção: Andrea Barata Ribeiro, Mauricio Andrade Ramos, Daniel Filho, Hank Levine, Vincent Maraval, Juliette Renaud
Roteiro: Paulo Lins e Bráulio Mantovani
Ano: 2002
Duração: 130 min.
Gênero: Drama


Em 1960, como uma medida público-social, o governo do Estado da Guanabara (hoje o município do Rio de Janeiro) criou complexos habitacionais para remover as várias favelas que compunham a região urbana. Um desses complexos foi a Cidade de Deus, povoada por favelados de 63 favelas distintas, o que evidencia uma heterogeneidade impressionante verificada nos tipos de trabalhadores, de culturas, de educação, de cor e raça. Na década de 1980, a favela presenciou a criação de dezenas de projetos e associações que melhoraram a vida de seus moradores e em 2009, após décas de períodos muito críticos para todos, a Cidade de Deus foi tomada pela Unidade de Polícia Pacificadora.


O jovem Buscapé é um rapaz sonhador que vive na Cidade de Deus e acaba realizando seu desejo de ser um fotógrafo. Mas antes disso, Buscapé vive toda a intensidade da favela onde mora observando tudo o que acontece a sua volta. O garoto relembra sua infância, onde era o irmão mais novo de um dos maiores marginais do local. Revela a história de Dadinho (ou Zé Pequeno) e toda a ascensão do tráfico na favela. Nesse contexto, Buscapé revive os passos que o levaram ao destino de se tornar um fotógrafo e mostra como a vida podia ser dura para os favelados entre as décadas de 1960 e 1980 na tão temida Cidade de Deus.


Falar sobre o enredo do filme é um pouco complicado, pois Buscapé relembra sua infância e nos conta um pouco da vida de todos os personagens importantes que compõe a trama. No início do filme, a antológica cena em que vários homens preparam galinhas para o almoço, uma delas foge e acaba indo parar bem na frente de Buscapé, que fica entre bandidos e policias. O tempo volta e o garoto lembra do trio composto por Cabeleira, Marreco (irmão de Buscapé) e Alicate, o Trio Ternura, que age na favela ora como verdadeiros bandidos, ora como herois no estilo Robin Hood. Ainda vemos, pela primeira vez, os pequenos Bené e Dadinho, esse um garoto sedento de sangue que se aproveita da fuga do Trio Ternura de um motel para cometer uma jacina no local. Um tempo depois, aos poucos, Dadinho toma quase toda a favela e torna-se Zé Pequeno. A partir daí, o contexto da favela já está construído como a imaginamos: o tráfico de drogas rola solto, os jovens são incitados desde pequenos a querer matar e admirar os traficantes – que, em alguns casos, não passam de homens de menos de 25 anos, Zé, por exemplo, acaba de completar 18 -, há a clara divisão daqueles que mandão e dos que obedecem (ou morrem), gangues vivem provocando umas as outras e a maior pretensão de um favelado acaba sendo estar ao lado de Zé Pequeno. Dessa forma, vemos como o contexto não permite que as pessoas na favela desejem outra coisa, pois não há nenhum outro tipo de oportunidade. Além disso, em um momento de glória, um homem bonito e decente, decide que se vingará de Zé por o bandido ter estuprado sua esposa e ter matado parte de sua família, e, ao contrário do que todos podemos imaginar, a favela se junta ao rapaz e mesmo que sem ajudá-lo de forma efetiva, apóia-o a matar quem ele quiser em prol de trazer a paz novamente à favela.


O roteiro do longa, baseado no romance de Paulo Lins, é uma beleza a parte em toda produção, pois no revela uma realidade nua e crua com a qual não estamos acostumados, realidade que poucos brasileiro imaginam acontecer em seu próprio país. Algumas pessoas acreditam que toda essa realidade seja um exagero por parte do roteiro, adaptado por Bráulio Mantovani, no entanto, tendo em vista todas as crueldades e terrorismos que vemos hoje, afirmo que tudo tem uma origem, ou seja, toda essa violência verificada nos dias de hoje nas favelas brasileiras, todo esse absurdo onde bandidos mandam no poder público – e muitas vez o próprio poder público faz parte das facções criminosas –, todo esse sistema como o apresentado nos filmes de “Tropa de Elite” não pode ter surgido do nada, sem motivos e sem antecedentes. Na realidade, creio que é bem isso o que podemos verificar nessas duas produções brasileiras que deixaram todo o mundo boquiaberto, cada uma em seu tempo: os problemas vivenciados pelo Capitão Nascimento são um reflexo do que ocorreu após a criação das favelas no Brasil. Enquanto Nascimento é o anti-heroi que faz seu trabalho de forma agressiva para prender bandidos, Mané Galinha é o anti-heroi que resolve se vingar de Zé Pequeno e aniquilar toda a máfia da favela. Quanto aos policiais? Não se iluda em não ver nada em “Cidade de Deus”, pois uma hora, previsivelmente, nos será revelado que eles são tão culpados quanto qualquer bandidão da favela. Finalizando meus comentários e minha análise sobre o roteiro, é essencial lembrar como os diálogos criados por Mantovani são maravilhosos, é claro que não estamos livres dos palavrões e de toda a baixaria imaginável, mas devemos lembrar, novamente, de todo o contexto que envolve a trama: como cortar assuntos grotescos e o uso de palavras de baixo calão em um filme que trata exatamente das pessoas que mais utilizam publicamente tais artifícios? Ao menos, assim era a favela há 30 anos. Fernando Meirelles iniciou sua carreira com a série televisiva “Rá-Tim-Bum” (1989), um programa de humor que ganhou o público; no cinema, seu primeiro trabalho de sucesso foi “Domésticas – O Filme” (2001), drama sobre essa parcela tão esquecida, mas essencial, da população brasileira; após o sucesso de “Cidade de Deus” vieram “O Jardineiro Fiel” (2005), com Ralph Fiennes e Rachel Weisz (vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante) e “Ensaio Sobre Cegueira” (2008) adaptação do romance de José Saramago com Mark Ruffalo e Julianne Moore no elenco. Nesse contexto, foi, sem sombra alguma de dúvidas, “Cidade de Deus” o filme que alavancou sua carreira e o colocou no panteão dos cineastas brasileiros, não obstante, o longa foi indicado em quatro categorias no Oscar, incluindo melhor direção e roteiro (ambos arrebatados pelo sucesso de “O Senhor dos Aneis: O Retorno do Rei”). Meirelles, portanto, está em sua melhor performance: reflete sobre a qualidade de vida de um brasileiro que mora em uma favela, mostrando os diversos lados de tudo o que acontece nesse tipo de “conjunto habitacional” e o como tanto povo, quanto governo, já deixaram de se preocupar com tal situação. Ao lado de Fernando está a co-diretora do filme Kátia Lund filha de americanos que vieram para o Brasil. A dupla, apresenta cada detalhe e cada canto da favela de forma sensacional, contrapondo as décadas abordadas e nos fazendo refletir se toda essa realidade mudou muito efetivamente ou não. Além disso, cada cena foi filmada de forma única desde o momento em que vemos a galinha fugindo dos bandidos – o que, além de ser uma cena muito boa, é uma metáfora inteligentíssima que pode ser interpretada de inúmeras formas diferentes no contexto do longa ou fora dele – até cenas mais cotidianas com o protagonista indo a praia com os amigos.


Finalmente chego a um dos componentes mais importantes do filme: o elenco. Buscapé é interpretado pelo até então iniciante Alexandre Rodrigues; o ator nos apresenta aquele tipo de trabalho que acho ótimo: quando podemos ver claramente as mudanças no personagem, digo, com o passar do tempo, Buscapé precisa aprender a se virar cada vez mais e correr atrás daquilo que deseja sem ter a ajuda de ninguém; além disso, Rodrigues, que estava prestes a completar vinte anos, traz as dúvidas e anseios frenquentes de qualquer adolescente, seja favelado ou não. Para viver Buscapé quando criança temos Luis Otávio, um menino ainda ingênuo até certo ponto que tenta compreender tudo o que acontece ao seu redor e possui apenas um desejo: não virar bandido. E se o sonho de Buscapé é nunca precisar ser um bandido, o sonho do pequeno Dadinho é totalmente o contrário: vivido por Dauglas Silva quando criança, o rapaz é, claramente, um perturbado que tem um prazer inexplicável em matar; naquela cena que citei a cima onde Dadinho comete uma chacina em um motel temos o melhor que se poderia pedir do ator: enquanto as pessoas são assassinadas, o personagem (e, portanto, seu intérprete) ri histericamente, deixando evidente seu desejo incontrolável por matar. Para viver o Dadinho grande, ou melhor “Dadinho é o caralho”, para viver Zé Pequeno, atua  Leandro Firmino, o personagem, como já disse, é totalmente violento e sanguinário e Firmino nos mostra o exato estereótipo de um traficante descontrolado, o tipo de jovem que tem tudo e, ao mesmo tempo, não tem nada, e por isso foca toda sua atenção em conquistar poder e mostrar que pode ser melhor do que o que os outros pensam, ou seja, Zé Pequeno não passa de um homem complexado que afoga suas decepções em matar, roubar, violentar e ganhar dinheiro. Phellipe Haagnsen é o melhor amigo de Zé Pequeno, Bené, e provavelmente o único ser humano que Zé ama e quer bem, o personagem é mais controlado, mas tranquilo e não possui nada da agressividade de Zé, e talvez seja isso que faça com que o bandido admire tanto seu amigo e o queira por perto o tempo todo. Alice Braga, também em início de carreira, faz uma pequena participação sendo a mulher por quem Bené se apaixona, o melhor de Angélica, sua personagem, é que ela não se torna o pivô de toda a trama e pouca coisa acaba girando em torno dela, de forma real, Angélica é apenas uma jovem sonhadora moradora de uma favela. Para completar esse elenco excelente, dois veteranos: Matheus Nachtergaele, um ator que já havia realizado quase 20 trabalhos na época, e Seu Jorge, cantor e compositor que lançara dois discos na época. Nachtergaele vive o outro traficante da favela, Cenoura possui o equivalente a mais ou menos um quinto de toda a Cidade de Deus e vive em atrito com Zé Pequeno pelo local, o ator, como de costume, está ótimo no papel e, diferente dos personagens dele que já estamos acostumados, aqueles mais engraçados ou excêntricos – como o Pai Helinho de “Da Cor do Pecado” (2004) ou o Miguezim de “Cordel Encantado” (2011) -, e sim um personagem mais sério, centrado, mais racional e que não se deixa levar pela emoção, como sempre, mais uma atuação maravilhosa e digna de aplausos do ator. Seu Jorge vive o pacato Mané Galinha, confesso que gosto de ver esse cantor incrível atuando uma vez ou outra, pelo simples fato de que tudo o que ele se propõe a realizar no cinema tem um resultado ótimo, aqui ele mostra como um homem pode ser transformado pelo mundo em que vive, no maior estilo Rousseau, vemos como o homem nasce bom, mas é corrompido pela sociedade.


No ano de 2000 foi ao ar uma série produzida pela Rede Globo que mostrava o cotidiano do povo brasileiro, dentre os episódios de “Brava Gente” encontramos “Palace II” que conta a história de dois jovens moradores da Cidade de Deus, Laranjinha e Acerola, que precisam arrumar dinheiro e resolvem trabalhar para um traficante. Dois anos depois de esse episódio ser lançado, Douglas Silva, Leandro Firmino, Jonathan Haagensen, Phallipe Haagensen e outros atores lançaram, ao lado de Fernando Meirelles e Kátia Lund (diretores de “Palace II), o longa “Cidade de Deus”, que mostra, mais uma vez, o cotidiano de um dos bairros mais perigosos do Rio de Janeiro, sem fazer questão de esconder qualquer fato, apenas mostrar, criticar e denunciar a forma desumana como a vida gira em torno de traficantes e outros tipos de bandidos e como todos acabam indo por esse caminho.


Longe de ser preconceituoso e dizer que todo favelado é bandido, ou que todo favelado é ignorante, ou, ainda, que todo favelado é mal educado, mas a realidade abordada aqui é exatamente essa generalização, como disse no primeiro parágrafo, apenas após a década de 1980 é que a Cidade de Deus começou a ter grandes projetos que melhorassem sua estrutura e trouxessem mais qualidade de vida à população – ou que, ao menos, mostrasse a quem quisesse ver que existem outras realidades na vida, que trouxessem outra perspectiva que não seja a de conquistar dinheiro e poder a qualquer custo, que mostrassem a perspectiva de uma vida digna e saudável -,  o que temos aqui, ainda é a favela em formação e sem ninguém para organizar tudo é óbvio que o local viraria uma bagunça. Infelizmente vivemos em uma realidade triste que pode ser verificada em um trecho de uma das várias ótimas músicas do longa, o próprio Seu Jorge entoa em uma das estrofes da canção: É a Cidade de Deus/Só que Deus esqueceu de olhar/A essa gente que não cansa de apanhar/Não vem dizer que a situação é uma questão de trabalhar/Que vai ter negro querendo te advogar. E é essa a dura realidade: parece que Deus esqueceu de olhar todo o sofrimento desses lugares, e pior, governo e população fingem que não vêem, por dois motivos: gente ignorante representa voto, e, perguntam-se os preconceituosos, por qual razão dar chances a favelados? E é enquanto permanecermos com esse pensamento que continuaremos a presenciar realidades tão deprimentes, apenas espero que continuemos a ter cineastas e produtores capazes e dispostos a denunciar todos os absurdos que ainda cercam o povo brasileiro como um vício que acabará em câncer e morte. Assim, ao menos tenta-se mudar os políticos e o restante desse tal “país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”.


Aproveitando o fato de o roteiro do longa ser escrito em língua portuguesa, disponibilizo uma das cenas do filme em que se pode verificar claramente a qualidade do trabalho de Bráulio Mantovani e como toda a essência dos personagens é captada. O diálogo é entre Cabeleira e Berenice um tempo após os acontecimentos no motel (obs: o fragmento está na íntegra do texto original):

INT. COZINHA DA CASA DE LÚCIA MARACANÃ - DIA 42
Berenice está lavando a louça do café da manhã. Cabeleira ajuda,
enxugando os pratos.
Cabeleira está tenso. Ensaia várias vezes iniciar uma conversa
com Berenice, mas não consegue ir em frente. Até que ela toma a
iniciativa.
O diálogo a seguir é entrecortado por breves momentos de
silêncio seguidos de efeitos de transição que sinalizam passagem
de tempo: pequenas elipses.
A cada transição, há menos louça suja.
BERENICE
Se você tem alguma coisa pra dizer, diz
logo, Cabeleira! Você tá me deixando
nervosa!
CABELEIRA
É que eu ainda tô escolhendo as palavras
certa, tá sabendo?
BERENICE
Você deve ser um cara muito escolhedor.
Gente assim não se dá bem na vida, não,
sentiu?
SILÊNCIO.
EFEITO: PASSAGEM DE TEMPO.
CABELEIRA
Então é o seguinte: vou te mandar uma letra
invocada agora: acho que meu coração te
escolheu, morou? Quem escolhe é o otário do
coração, e quando eu te vi meu relógio
despertou pensando que era manhã de sol.
BERENICE
Tu tá é de conversa fiada, rapá... Coração
de malandro bate é na sola do pé e não
desperta, não, fica sempre na moita!


CABELEIRA
Pô, mina... Já viu falar em amor à primeira
vista?
BERENICE
Malandro não ama, malandro só sente desejo.
CABELEIRA
Assim não dá nem pra conversar...
BERENICE
Malandro não conversa, malandro desenrola
uma idéia!
CABELEIRA
Pô, tudo que eu falo, você mete a foice!
BERENICE
Malandro não fala, malandro manda uma
letra!
CABELEIRA
Vou parar de gastar meu português contigo.
BERENICE
Malandro não pára, malandro dá um tempo.
SILÊNCIO.
EFEITO: PASSAGEM DE TEMPO.
CABELEIRA
Falar de amor com você é barra pesada.
BERENICE
Que amor nada, rapá. Tu tá é de sete-um!
CABELEIRA
Malandro vira otário quando ama.
SILÊNCIO.
EFEITO: PASSAGEM DE TEMPO.
Berenice larga o prato na pia, e coloca os braços em volta do
pescoço de Cabeleira, oferecendo-se para um beijo.
BERENICE
Tu vai acabar me convencendo...
Eles se beijam na boca.

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