“Cidade de Deus” explora, de forma real
e sem pudores, a terrível vida de quem mora em uma favela, trazendo um filme
cheio de surpresas e qualidade, mostrando a verdadeira face de uma parcela do
povo brasileiro.
Nota: DEZ
Título Original: Cidade de Deus
Direção: Fernando Meirelles e Kátia Lund
Elenco: Alexandre Rodrigues, Leandro
Firmino, Phellipe Haagensen, Douglas Silva, Jonathan Haagensen, Matheus
Natchtergaele, Seu Jorge, Jefechander Suplino, Alice Braga, Emerson Gomes,
Edson Oliveira, Michel de Souza,
Produção: Andrea Barata Ribeiro,
Mauricio Andrade Ramos, Daniel Filho, Hank Levine, Vincent Maraval, Juliette
Renaud
Roteiro: Paulo Lins e Bráulio Mantovani
Ano: 2002
Duração: 130 min.
Gênero: Drama
Em 1960, como uma medida público-social,
o governo do Estado da Guanabara (hoje o município do Rio de Janeiro) criou
complexos habitacionais para remover as várias favelas que compunham a região
urbana. Um desses complexos foi a Cidade de Deus, povoada por favelados de 63
favelas distintas, o que evidencia uma heterogeneidade impressionante
verificada nos tipos de trabalhadores, de culturas, de educação, de cor e raça.
Na década de 1980, a favela presenciou a criação de dezenas de projetos e
associações que melhoraram a vida de seus moradores e em 2009, após décas de
períodos muito críticos para todos, a Cidade de Deus foi tomada pela Unidade de
Polícia Pacificadora.
O jovem Buscapé é um rapaz sonhador que
vive na Cidade de Deus e acaba realizando seu desejo de ser um fotógrafo. Mas
antes disso, Buscapé vive toda a intensidade da favela onde mora observando
tudo o que acontece a sua volta. O garoto relembra sua infância, onde era o
irmão mais novo de um dos maiores marginais do local. Revela a história de Dadinho
(ou Zé Pequeno) e toda a ascensão do tráfico na favela. Nesse contexto, Buscapé
revive os passos que o levaram ao destino de se tornar um fotógrafo e mostra
como a vida podia ser dura para os favelados entre as décadas de 1960 e 1980 na
tão temida Cidade de Deus.
Falar sobre o enredo do filme é um pouco
complicado, pois Buscapé relembra sua infância e nos conta um pouco da vida de
todos os personagens importantes que compõe a trama. No início do filme, a
antológica cena em que vários homens preparam galinhas para o almoço, uma delas
foge e acaba indo parar bem na frente de Buscapé, que fica entre bandidos e
policias. O tempo volta e o garoto lembra do trio composto por Cabeleira,
Marreco (irmão de Buscapé) e Alicate, o Trio Ternura, que age na favela ora
como verdadeiros bandidos, ora como herois no estilo Robin Hood. Ainda vemos,
pela primeira vez, os pequenos Bené e Dadinho, esse um garoto sedento de sangue
que se aproveita da fuga do Trio Ternura de um motel para cometer uma jacina no
local. Um tempo depois, aos poucos, Dadinho toma quase toda a favela e torna-se
Zé Pequeno. A partir daí, o contexto da favela já está construído como a
imaginamos: o tráfico de drogas rola solto, os jovens são incitados desde
pequenos a querer matar e admirar os traficantes – que, em alguns casos, não
passam de homens de menos de 25 anos, Zé, por exemplo, acaba de completar 18 -,
há a clara divisão daqueles que mandão e dos que obedecem (ou morrem), gangues
vivem provocando umas as outras e a maior pretensão de um favelado acaba sendo
estar ao lado de Zé Pequeno. Dessa forma, vemos como o contexto não permite que
as pessoas na favela desejem outra coisa, pois não há nenhum outro tipo de
oportunidade. Além disso, em um momento de glória, um homem bonito e decente,
decide que se vingará de Zé por o bandido ter estuprado sua esposa e ter matado
parte de sua família, e, ao contrário do que todos podemos imaginar, a favela
se junta ao rapaz e mesmo que sem ajudá-lo de forma efetiva, apóia-o a matar
quem ele quiser em prol de trazer a paz novamente à favela.
O roteiro do longa, baseado no romance
de Paulo Lins, é uma beleza a parte em toda produção, pois no revela uma
realidade nua e crua com a qual não estamos acostumados, realidade que poucos
brasileiro imaginam acontecer em seu próprio país. Algumas pessoas acreditam
que toda essa realidade seja um exagero por parte do roteiro, adaptado por
Bráulio Mantovani, no entanto, tendo em vista todas as crueldades e terrorismos
que vemos hoje, afirmo que tudo tem uma origem, ou seja, toda essa violência
verificada nos dias de hoje nas favelas brasileiras, todo esse absurdo onde
bandidos mandam no poder público – e muitas vez o próprio poder público faz
parte das facções criminosas –, todo esse sistema como o apresentado nos filmes
de “Tropa de Elite” não pode ter surgido do nada, sem motivos e sem antecedentes.
Na realidade, creio que é bem isso o que podemos verificar nessas duas
produções brasileiras que deixaram todo o mundo boquiaberto, cada uma em seu
tempo: os problemas vivenciados pelo Capitão Nascimento são um reflexo do que
ocorreu após a criação das favelas no Brasil. Enquanto Nascimento é o
anti-heroi que faz seu trabalho de forma agressiva para prender bandidos, Mané
Galinha é o anti-heroi que resolve se vingar de Zé Pequeno e aniquilar toda a
máfia da favela. Quanto aos policiais? Não se iluda em não ver nada em “Cidade
de Deus”, pois uma hora, previsivelmente, nos será revelado que eles são tão
culpados quanto qualquer bandidão da favela. Finalizando meus comentários e
minha análise sobre o roteiro, é essencial lembrar como os diálogos criados por
Mantovani são maravilhosos, é claro que não estamos livres dos palavrões e de
toda a baixaria imaginável, mas devemos lembrar, novamente, de todo o contexto
que envolve a trama: como cortar assuntos grotescos e o uso de palavras de
baixo calão em um filme que trata exatamente das pessoas que mais utilizam
publicamente tais artifícios? Ao menos, assim era a favela há 30 anos. Fernando
Meirelles iniciou sua carreira com a série televisiva “Rá-Tim-Bum” (1989), um
programa de humor que ganhou o público; no cinema, seu primeiro trabalho de
sucesso foi “Domésticas – O Filme” (2001), drama sobre essa parcela tão
esquecida, mas essencial, da população brasileira; após o sucesso de “Cidade de
Deus” vieram “O Jardineiro Fiel” (2005), com Ralph Fiennes e Rachel Weisz
(vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante) e “Ensaio Sobre Cegueira”
(2008) adaptação do romance de José Saramago com Mark Ruffalo e Julianne Moore
no elenco. Nesse contexto, foi, sem sombra alguma de dúvidas, “Cidade de Deus”
o filme que alavancou sua carreira e o colocou no panteão dos cineastas
brasileiros, não obstante, o longa foi indicado em quatro categorias no Oscar,
incluindo melhor direção e roteiro (ambos arrebatados pelo sucesso de “O Senhor
dos Aneis: O Retorno do Rei”). Meirelles, portanto, está em sua melhor
performance: reflete sobre a qualidade de vida de um brasileiro que mora em uma
favela, mostrando os diversos lados de tudo o que acontece nesse tipo de “conjunto
habitacional” e o como tanto povo, quanto governo, já deixaram de se preocupar
com tal situação. Ao lado de Fernando está a co-diretora do filme Kátia Lund
filha de americanos que vieram para o Brasil. A dupla, apresenta cada detalhe e
cada canto da favela de forma sensacional, contrapondo as décadas abordadas e
nos fazendo refletir se toda essa realidade mudou muito efetivamente ou não.
Além disso, cada cena foi filmada de forma única desde o momento em que vemos a
galinha fugindo dos bandidos – o que, além de ser uma cena muito boa, é uma
metáfora inteligentíssima que pode ser interpretada de inúmeras formas
diferentes no contexto do longa ou fora dele – até cenas mais cotidianas com o
protagonista indo a praia com os amigos.
Finalmente chego a um dos componentes
mais importantes do filme: o elenco. Buscapé é interpretado pelo até então
iniciante Alexandre Rodrigues; o ator nos apresenta aquele tipo de trabalho que
acho ótimo: quando podemos ver claramente as mudanças no personagem, digo, com
o passar do tempo, Buscapé precisa aprender a se virar cada vez mais e correr
atrás daquilo que deseja sem ter a ajuda de ninguém; além disso, Rodrigues, que
estava prestes a completar vinte anos, traz as dúvidas e anseios frenquentes de
qualquer adolescente, seja favelado ou não. Para viver Buscapé quando criança
temos Luis Otávio, um menino ainda ingênuo até certo ponto que tenta
compreender tudo o que acontece ao seu redor e possui apenas um desejo: não
virar bandido. E se o sonho de Buscapé é nunca precisar ser um bandido, o sonho
do pequeno Dadinho é totalmente o contrário: vivido por Dauglas Silva quando
criança, o rapaz é, claramente, um perturbado que tem um prazer inexplicável em
matar; naquela cena que citei a cima onde Dadinho comete uma chacina em um motel
temos o melhor que se poderia pedir do ator: enquanto as pessoas são
assassinadas, o personagem (e, portanto, seu intérprete) ri histericamente,
deixando evidente seu desejo incontrolável por matar. Para viver o Dadinho
grande, ou melhor “Dadinho é o caralho”, para viver Zé Pequeno, atua Leandro Firmino, o personagem, como já disse,
é totalmente violento e sanguinário e Firmino nos mostra o exato estereótipo de
um traficante descontrolado, o tipo de jovem que tem tudo e, ao mesmo tempo,
não tem nada, e por isso foca toda sua atenção em conquistar poder e mostrar
que pode ser melhor do que o que os outros pensam, ou seja, Zé Pequeno não
passa de um homem complexado que afoga suas decepções em matar, roubar,
violentar e ganhar dinheiro. Phellipe Haagnsen é o melhor amigo de Zé Pequeno,
Bené, e provavelmente o único ser humano que Zé ama e quer bem, o personagem é
mais controlado, mas tranquilo e não possui nada da agressividade de Zé, e
talvez seja isso que faça com que o bandido admire tanto seu amigo e o queira
por perto o tempo todo. Alice Braga, também em início de carreira, faz uma
pequena participação sendo a mulher por quem Bené se apaixona, o melhor de
Angélica, sua personagem, é que ela não se torna o pivô de toda a trama e pouca
coisa acaba girando em torno dela, de forma real, Angélica é apenas uma jovem
sonhadora moradora de uma favela. Para completar esse elenco excelente, dois
veteranos: Matheus Nachtergaele, um ator que já havia realizado quase 20
trabalhos na época, e Seu Jorge, cantor e compositor que lançara dois discos na
época. Nachtergaele vive o outro traficante da favela, Cenoura possui o
equivalente a mais ou menos um quinto de toda a Cidade de Deus e vive em atrito
com Zé Pequeno pelo local, o ator, como de costume, está ótimo no papel e,
diferente dos personagens dele que já estamos acostumados, aqueles mais
engraçados ou excêntricos – como o Pai Helinho de “Da Cor do Pecado” (2004) ou
o Miguezim de “Cordel Encantado” (2011) -, e sim um personagem mais sério,
centrado, mais racional e que não se deixa levar pela emoção, como sempre, mais
uma atuação maravilhosa e digna de aplausos do ator. Seu Jorge vive o pacato
Mané Galinha, confesso que gosto de ver esse cantor incrível atuando uma vez ou
outra, pelo simples fato de que tudo o que ele se propõe a realizar no cinema
tem um resultado ótimo, aqui ele mostra como um homem pode ser transformado
pelo mundo em que vive, no maior estilo Rousseau, vemos como o homem nasce bom,
mas é corrompido pela sociedade.
No ano de 2000 foi ao ar uma série
produzida pela Rede Globo que mostrava o cotidiano do povo brasileiro, dentre
os episódios de “Brava Gente” encontramos “Palace II” que conta a história de
dois jovens moradores da Cidade de Deus, Laranjinha e Acerola, que precisam
arrumar dinheiro e resolvem trabalhar para um traficante. Dois anos depois de
esse episódio ser lançado, Douglas Silva, Leandro Firmino, Jonathan Haagensen,
Phallipe Haagensen e outros atores lançaram, ao lado de Fernando Meirelles e
Kátia Lund (diretores de “Palace II), o longa “Cidade de Deus”, que mostra,
mais uma vez, o cotidiano de um dos bairros mais perigosos do Rio de Janeiro,
sem fazer questão de esconder qualquer fato, apenas mostrar, criticar e
denunciar a forma desumana como a vida gira em torno de traficantes e outros
tipos de bandidos e como todos acabam indo por esse caminho.
Longe de ser preconceituoso e dizer que
todo favelado é bandido, ou que todo favelado é ignorante, ou, ainda, que todo
favelado é mal educado, mas a realidade abordada aqui é exatamente essa
generalização, como disse no primeiro parágrafo, apenas após a década de 1980 é
que a Cidade de Deus começou a ter grandes projetos que melhorassem sua
estrutura e trouxessem mais qualidade de vida à população – ou que, ao menos,
mostrasse a quem quisesse ver que existem outras realidades na vida, que
trouxessem outra perspectiva que não seja a de conquistar dinheiro e poder a
qualquer custo, que mostrassem a perspectiva de uma vida digna e saudável -, o que temos aqui, ainda é a favela em formação
e sem ninguém para organizar tudo é óbvio que o local viraria uma bagunça.
Infelizmente vivemos em uma realidade triste que pode ser verificada em um
trecho de uma das várias ótimas músicas do longa, o próprio Seu Jorge entoa em
uma das estrofes da canção: É a Cidade de Deus/Só que Deus esqueceu de olhar/A
essa gente que não cansa de apanhar/Não vem dizer que a situação é uma questão
de trabalhar/Que vai ter negro querendo te advogar. E é essa a dura realidade:
parece que Deus esqueceu de olhar todo o sofrimento desses lugares, e pior,
governo e população fingem que não vêem, por dois motivos: gente ignorante
representa voto, e, perguntam-se os preconceituosos, por qual razão dar chances
a favelados? E é enquanto permanecermos com esse pensamento que continuaremos a
presenciar realidades tão deprimentes, apenas espero que continuemos a ter
cineastas e produtores capazes e dispostos a denunciar todos os absurdos que
ainda cercam o povo brasileiro como um vício que acabará em câncer e morte.
Assim, ao menos tenta-se mudar os políticos e o restante desse tal “país
tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”.
Aproveitando o fato de o roteiro do
longa ser escrito em língua portuguesa, disponibilizo uma das cenas do filme em
que se pode verificar claramente a qualidade do trabalho de Bráulio Mantovani e
como toda a essência dos personagens é captada. O diálogo é entre Cabeleira e
Berenice um tempo após os acontecimentos no motel (obs: o fragmento está na
íntegra do texto original):
INT. COZINHA DA CASA
DE LÚCIA MARACANÃ - DIA 42
Berenice está lavando
a louça do café da manhã. Cabeleira ajuda,
enxugando os pratos.
Cabeleira está tenso.
Ensaia várias vezes iniciar uma conversa
com Berenice, mas não
consegue ir em frente. Até que ela toma a
iniciativa.
O diálogo a seguir é
entrecortado por breves momentos de
silêncio seguidos de
efeitos de transição que sinalizam passagem
de tempo: pequenas
elipses.
A cada transição, há
menos louça suja.
BERENICE
Se você tem alguma
coisa pra dizer, diz
logo, Cabeleira! Você
tá me deixando
nervosa!
CABELEIRA
É que eu ainda tô
escolhendo as palavras
certa, tá sabendo?
BERENICE
Você deve ser um cara
muito escolhedor.
Gente assim não se dá
bem na vida, não,
sentiu?
SILÊNCIO.
EFEITO: PASSAGEM DE
TEMPO.
CABELEIRA
Então é o seguinte:
vou te mandar uma letra
invocada agora: acho
que meu coração te
escolheu, morou? Quem
escolhe é o otário do
coração, e quando eu
te vi meu relógio
despertou pensando que
era manhã de sol.
BERENICE
Tu tá é de conversa
fiada, rapá... Coração
de malandro bate é na
sola do pé e não
desperta, não, fica
sempre na moita!
CABELEIRA
Pô, mina... Já viu
falar em amor à primeira
vista?
BERENICE
Malandro não ama,
malandro só sente desejo.
CABELEIRA
Assim não dá nem pra
conversar...
BERENICE
Malandro não conversa,
malandro desenrola
uma idéia!
CABELEIRA
Pô, tudo que eu falo,
você mete a foice!
BERENICE
Malandro não fala,
malandro manda uma
letra!
CABELEIRA
Vou parar de gastar
meu português contigo.
BERENICE
Malandro não pára,
malandro dá um tempo.
SILÊNCIO.
EFEITO: PASSAGEM DE
TEMPO.
CABELEIRA
Falar de amor com você
é barra pesada.
BERENICE
Que amor nada, rapá.
Tu tá é de sete-um!
CABELEIRA
Malandro vira otário
quando ama.
SILÊNCIO.
EFEITO: PASSAGEM DE
TEMPO.
Berenice larga o prato
na pia, e coloca os braços em volta do
pescoço de Cabeleira,
oferecendo-se para um beijo.
BERENICE
Tu vai acabar me
convencendo...
Eles se beijam na
boca.
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