Fernanda Montenegro transforma o longa no perfeito retrato de nosso povo e nosso
país com sua atuação tocante, sensível e reflexiva.
Nota: 9,5
Título original: Central do Brasil
Direção: Walter Salles
Elenco: Fernanda Montenegro, Vinícius de
Oliveira, Maríli Pêra, Matheus Nachtergaele, Saia Lira, Othon Bastos, Otávio
Augusto, Stela Freitas, Caio Junqueira
Produção: Martine de Clermont-Tonnerre,
Arthur Cohn, Robert Redford, Walter Salles
Roteiro: Marcos Bernstein, João Emanuel
Carneiro e Walter Salles
Ano: 1998
Duração: 113 min.
Gênero: Drama
Dora é uma professora aposentada que
escreve cartas para analfabetos e envia algumas delas para fazer um dinheiro
extra. Todavia, sua vida mudará completamente quando Ana e Josué pedem para que
envie uma carta ao pai do menino, pois Ana morre e Dora se sente responsável
por ajudar Josué a encontrar o pai. Para isso, ela e o garoto atravessam
centenas de obstáculos rumo ao nordeste, e o maior deles são as próprias
frustrações e medos de cada um acerca do passado, presente e futuro.
Walter Salles havia realizado alguns
documentários para televisão e apenas dois filmes para o cinema – “A Grande
Arte” (1991), adaptação do romance de Rubens Fonseca, e “Terra Estrangeira”
(1996), com Alberto Alexandre, Fernando Alves Pinto e Alexandre Borges – antes
de realizar esse que se tornou um dos maiores símbolos do cinema nacional.
Nesse filme, percorremos o Sudeste e o Nordeste do Brasil ao lado de Dora e
Josué, conhecemos culturas diferentes, visitamos locais que mal sabemos que
existem, somos expostos a realidade que, por viver nesse nosso mundo urbano e
belo das regiões mais ricas e urbanizadas do Brasil, deixaram de fazer parte de
nossa realidade. O Sertão, por exemplo, nos é mostrado como um local difícil de
viver, mas, ainda, um local de muitas belezas; as pessoas mais simples do
nordeste, aquelas que não foram marginalizadas por serem pobres vivendo em
grandes centros urbanos, são pessoas boas, sem maldade e que desejam ajudar o
próximo. Para compor todo esse cenário, Salles utiliza uma forma linda de
filmar cada cena, captando todas as belezas e contrapondo-as com os problemas
que todos encontramos em qualquer lugar do mundo. O roteiro, muito bem escrito
por Walter, que escreveu a história, Marcos Bernstein – que viria a escrever “O
Xangô de Baker Street” (2001), “Chico Xavier” (2010), “Somos Tão Jovens” (2013)
e “Faroeste Caboclo” (2013) – e João Emanuel Carneiro – de “Orfeu” (1999), “Da
Cor do Pecado” (2004), “A Favorita” (2009) e “Avenida Brasil” (2012) – é algo
único por absorver cada detalhe de cada umas das várias culturas presentes em
nosso país, desde a forma de falar de cada região, o tipo de comida, o tipo de
tratamento com o semelhante, as gírias, a forma de andar e de se preocupar com
a vida, mas, acima de tudo, o roteiro desse longa é um presente por nos
apresentar uma história tão bonita e tocante que nos faz refletir sobre cada
atitude que tomamos em nossa vida e sobre como podemos nos arrepender no futuro
ou magoar pessoas que amamos se não pensarmos bem em nossos atos.
Em primeiro lugar, devemos analisar esse
filme como uma representação e crítica à sociedade brasileira, mais que isso:
uma homenagem ao povo brasileiro que tanto lutou, e luta, para sobreviver, não
importando a região, a classe social ou a cor. É claro, que, em um filme que
leva o título “Central do Brasil”, devemos nos preparar, pois estaremos diante
de algumas realidades tristes, diferentes das analisadas em longas depois
desse, como “Cidade de Deus” (2002) ou os filmes “Tropa De Elite”, que mostram
as favelas das grandes cidades do país, chefiadas por traficantes e corruptos,
o que vemos aqui é algo diferente, menos chocante e mais comum ainda do que as
realidades das favelas. Nesse contexto, já está o fato de Josué não ter
conhecido o pai, não importando os motivos, apenas já podemos ter a certeza de
que alguma coisa está errada; depois vemos uma das maiores denúncias do longa,
Dora é uma professora de ensino infantil aposentada, que escreve cartas de
pessoas desconhecidas para pessoas desconhecidas para ganhar um dinheiro a mais
no final do mês, afinal, apenas a aposentadoria de professora não é o
suficiente para muita coisa; ainda temos a tentativa louca de Dora em vender Josué
para pessoas que, supostamente, arrumarão uma família rica para ele, o que
deleta a precariedade no Brasil em questão de segurança pública para nossas
crianças. Durante o desenrolar da trama, a protagonista contará um pouco de sua
história e veremos que essa realidade triste a que tanto me refiro já está
presente em nossa sociedade há muitos anos; Josué conhecerá o Nordeste e verá o
quanto tudo pode piorar, ou melhorar, depende do quão longe vão os sonhos de
cada um. Acrescente a isso, algo que acredito ser uma das coisas mais belas do
filme: temos a inocência do protagonista, um menino que sonha em ir atrás do
pai, mesmo tendo informações de que ele é um bêbado, digo, por mais que o
garoto tente parecer maduro e vivido, temos a certeza que tudo o que ele faz é
baseado em um sentimento maior, algo inexplicável, o desejo de encontrar o pai
e, ao menos olhar em seus olhos e saber quem ele é, faz com que ele tenha
forças para ultrapassar todas as barreiras encontradas no caminho. Dora, por
fim, é a representação perfeita do retrato da mulher brasileira: forte, nada
submissa, inteligente, ríspida e que não mede esforços para chegar onde quer ou
para fazer o que acha certo, apesar dos problemas que encontrou através da
vida, essa protagonista não tem medo de viver, não tem medo de realizar nada e
se dispõe a tudo pelos seus ideais, mesmo que nem saiba quais são realmente.
Fernando Montenegro dispensa qualquer
apresentação e é mais que necessário dizer que, por sua interpretação de Dora,
foi indicada ao Globo de Ouro e ao Oscar, o prêmio máximo do cinema, sendo a
única brasileira a disputar a estatueta na história da Academia. No entanto,
confesso que jamais imaginei vê-la em uma personagem como essa. Deixe-me explicar:
para mim, como para a grande maioria dos brasileiros, Fernanda Montenegro se
parece mais com suas personagens de “Belíssima” (2006) ou “Passione” (2010), ou
seja, mulheres cheias de classe, inexpugnáveis e lindas. Não que aqui a atriz
perca todas essas características, pois a forma correta de falar, por exemplo,
permanece (afinal, Dora era uma professora), mas se vai quase todo tipo de
postura, a construção da personagem é tão fantástica que é mudada a forma de
falar, andar, sorrir, mexer nos cabelos, conversar com os outros, aqui, como a
própria personagem pede, Fernanda está mais despojada, despe-se de todo o traje
politicamente correto socialmente falando e nos mostra uma mulher comum, uma
verdadeira brasileira sujeita a defeitos e qualidades, mas não por isso uma
mulher menos digna e admirável que qualquer outra personagem vivida pela atriz.
Vinícius de Oliveira foi escolhido entre mais de 1500 garotos para viver o
pequeno Josué na trama, apesar de novo (ele tinha 12 anos durante as filmagens)
é o tipo de ator que compreende bem o que se deve fazer em um filme e consegue
segurar tudo ao lado de Fernanda, melhor do que isso: Vinicius se iguala a essa
fera inquestionável que é Fernanda Montenegro. E o melhor de tudo: Vinicius de
Oliveira, ao contrário da maioria dos jovens atores que fazem sucesso e, desde
cedo, já trabalham com atores conceituados, está prestes a completar 28 anos e
se formar em cinema. Marília Pêra, outro grande exemplo da sétima arte no
Brasil, é a melhor amiga de Dora, Irene, também professora aposentada, mas,
diferentemente de Dora, uma mulher que parece ser mais de bem com a vida, mas
que, ao mesmo tempo, parece não ter se dado conta de que o tempo passou e tudo
está mudando. Do restante do elenco, destaco Matheus Nachtergaele, como sempre
ótimo, e Caio Junqueira, em um papel quase irreconhecível, apenas digo que
ambos estão excelentes e que representam muito bem o povo nordestino, falar
mais sobre seus personagens seria estragar uma parte muito agradável do enredo.
Apenas para esclarecer, além das
indicações de Fernanda, o longa esteve na luta pelo Oscar de melhor filme
estrangeiro e venceu o Globo de Ouro na mesma categoria. O título de “Central
do Brasil” em inglês é tão sugestivo quanto o título original, na versão
americana lê-se “Central Station” (Estação Central), uma referência ao local
carioca onde os protagonistas, Dora e Josué, conheceram-se, mas também uma
referência a todas as estações de trem, metrô, ônibus ou o que forem espalhadas
pelo mundo, locais onde a vida realmente acontece, onde pessoas correm de um
lado a outro, muitas sem saber para onde ir, mas sempre chegando em algum
lugar, e muitas sabendo para onde ir, mas jamais chegando a lugar algum.
“Central do Brasil” nos obriga a refletir sobre isso mesmo: até onde tudo o que
planejamos para nossas vidas poderá realmente acontecer? Até onde estamos
certos e estamos seguindo o caminho que nos foi traçado? O filme nos faz ver o
quanto podemos deixar a vida nos levar, sem nos prendermos ao nosso mundinho
maravilhoso, ou nem tanto, mas que, de uma forma ou outra, é sempre igual,
sempre previsível, nossa redoma de vidro. Um mundo onde jamais estamos com
medo, onde nunca corremos perigo, onde estamos totalmente seguros de tudo o que
é externo, porém um mundo fictício que não recebe nada de novo, onde mudanças
são impossíveis, onde, de forma bem sincera, acredito qeu nenhum ser humano
deva viver até seu último dia, afinal, se o fizer, em algum momento olhará para
trás e irá perceber o quanto a vida poderia ter sido melhor e como tudo seria
completamente diferente se uma segunda chance fosse dada. Por sorte, Dora teve
sua segunda chance.
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