Especial X Panorama Internacional Coisa de Cinema. Filmes: "My name is Now, Elza Soares" e "Castanha"
A segunda metade do dia de quinta-feira
(30) foi dedicada, respectivamente, a filmes da Mostra Panorama Brasil (fora
das competitivas) e da Mostra da Competitiva Nacional, “My name is now, Elza
Soares”, de Elizabete Maria Campos, que conta com participação da própria Elza
para contar sua história de vida e falar sobre seus pensamentos, e “Castanha”,
de Davi Pretto, que conta a história de João Carlos Castanha, um ator
homossexual que ganha a vida nos palcos (como transformista ou não). Durante a
apresentação do primeiro longa, o festival recebeu a visita dos alunos oitavo
ano/sétima série (entre 12 e 14 anos) da Escola Estadual Edvaldo Brandão
Correa, acompanhados pelo professor Sandro Augusto*. Segundo ele o cinema é uma
nova linguagem, “o filme, hoje, não ocupa mais uma condição de marginalidade”
tornando-se “uma ferramenta auxiliar para a gente dar aula”. Entretanto, Sandro
acha que os jovens cachoeiranos ainda não conseguem mensurar a importância da
produção cinematográfica para a cidade de Cachoeira. Sandro considera que,
mesmo sendo bom, para a formação cognitiva dos jovens, o cinema ainda está
muito distante deles, faltando alguma ferramenta de aproximação para eventos
como o Panorama e o próprio CachoeiraDoc (o festival de Documentários de
Cachoeira que é atrelado à Universidade). Uma das alternativas seria ir nas
comunidades divulgado o evento e atraindo o público para assistir aos filmes e
participar das oficinas oferecidas.
“My
Name is Now, Elza Soares” inicia da forma mais clichê possível: com a
personagem título entoando um de seus sucessos. Os clichês param por aí.
Elizabete Martins Campos traz um filme tão convencional quanto a própria
cantora. Diferente de outros documentários, explora a alma da personagem
principal, apresentando seus depoimentos sobre a vida, sobre o que passou e
sobre o que Elza espera do futuro. Não existem aqueles relados comuns onde a
cantora poderia falar e falar sobre sua infância pobre e sua juventude conturbada.
Essa mulher negra e pobre, como ela mesma se define, uma pessoa que pode ser
tudo ou nada, prefere falar sobre seus pensamentos, seus desejos, suas visões
sobre a vida, seus sentimentos em relação à vida. As histórias reais, sobre
como chegou ao estrelato, como conheceu, se apaixonou e casou com Garrincha, a
perda do filho, os sofrimentos por ser uma minoria completamente reprimida são
deixados para segundo plano. Temos aqui a Elza Soares de agora, mais viva que
nunca. Temos lembranças de uma Elza que ainda está aqui e ali. Lembranças de
uma Elza que insiste em viver o agora, que insiste em viver agora. Uma Elza que
vive. Uma Elza que viverá para sempre.
Filme: "My name is Now, Elza Soares", de Elizabete Martins Campos |
Entretanto, a diferença deste
documentário para os convencionais não é apenas na narrativa. Elizabete Martins
Campos escolheu diversificar totalmente na forma de realizar seu filme. As
fotografias e registros clássicos de qualquer filme do gênero ainda estão
presentes. Elza canta enquanto esses registros são apresentados. Todavia, em
sobreposição a esses registros, aparecem luzes, focos e outros artifícios para
diferenciar a imagem sem deixar com que ela se perca. A diretora faz paralelos,
por exemplo, entre o rosto de Elza e uma lua cheia que ora aparece por
completo, ora some devido a uma nuvem muito escura. Elza aparece nua. Elza faz
fotos sensuais. Elza se veste como madrinha de bateria de uma escola de samba. Elza
é massageada por um homem sexy. E Elza canta. Elza canta seus maiores sucessos
e, ao invés de contar seu passado, relembra músicas que diziam muito sobre a
época, ou músicas que dizem muito sobre o hoje, sobre o Agora. Tudo isso,
claramente, é feito para aproximar a produção da protagonista. Este filme é
sobre Elza. É um filme para Elza. É um filme de Elza. “My name is Now, Elza
Soares” é um filme que respira, transpira, inspira Elza Soares como poucas
produções conseguem fazer com seus protagonistas.
“Castanha”, também possui um pé no
documentário, mas usa do artifício da ficção para se completar. Após se formar
na PUCRS em Cinema, Davi Pretto acabou conhecendo João Carlos Castanha, um ator
conhecido na capital gaúcha. Durante alguns anos, Davi fez uma espécie de
laboratório conversando e conhecendo mais sobre a vida do artista e de sua mãe,
Dona Celina. Quando tudo estava pronto, Davi acompanhou a vida dos dois durante
vinte dias, filmando tudo o que desejava e lhe era permitido. Algumas coisas
eram espontâneas, outras respeitavam um roteiro que, geralmente, recriava
acontecimentos, ou apenas improvisações dos personagens. A história, além de
contar com mãe e filho, contava, também, com um sobrinho de João Carlos, um
jovem viciado em drogas que é interpretado por um ator. O longa, realizado com
um orçamento baixíssimo, tem como primeira cena um homem nu coberto de sangue,
dos pés à cabeça. Pela imagem e pela música (uma união de todas as músicas
criadas para o filme) já se pode ter noção do que virá: um filme melancólico,
denso, forte, escuro, com vários contrastes e muitas surpresas. Aquele homem,
no final das contas, é o exterior do que, na maior parte do longa, se passa na
cabeça e na vida do protagonista. A cena, segundo Davi, é um resumo de tudo o
que está por vir.
Filme: "Castanha", de Davi Pretto |
Mas não é apenas o cuidado técnico (que
traz uma fotografia incrível, uma edição sonora impressionante, uma direção de
arte minimalista) e com o roteiro que surpreendem no filme. Os personagens
reais são o maior trunfo do diretor. Dona Celina é uma mulher espontânea,
engraçada, simples e que representa perfeitamente as mães e mulheres que
conhecemos. João é uma figura rara em meio aos milhões de habitantes de Porto
Alegre, um verdadeiro artista em busca da compreensão de sua alma e de todos os
demais seres humanos. As situações vistas no filme são as mais diversas, sempre
permeando pela naturalidade e veracidade, tornando o filme engraçado em cenas
como quando Dona Celina discute com a síndica do prédio em que vivem, e
emocionante em momentos como quando ela desabafa sobre a vida. João possui seus
melhores momentos durante suas apresentações, revelando que o palco
(independente da forma como ele esteja representando) é a fuga para os problemas
e frustrações de sua vida. É no palco que Castanha se sente vivo, revigorado. É
o palco que o estimula para continuar vivendo.
Assistir a essas duas espécies de
cinebiografias em um mesmo dia foi, sem dúvida, uma experiência interessante.
Elza Soares e João Carlos Castanha possuem mais em comum do que possam
imaginar. São duas figuras enigmáticas, cheias de histórias para contar, duas
personalidades vividas que já passaram por muito sofrimento, muita dor e muito
preconceito, ela, por ser uma mulher negra e pobre, ele, por ser um ator
homossexual e transformista. Os filmes, nesse contexto, acompanham as
personalidades de cada um: “My name is now, Elza Soares” é um filme com muito
jogo de luz tornando-o tão artístico quanto a própria figura de Elza, e que
concilia a voz espetacular da cantora com uma sonorização de arrepiar,
“Castanha” é um filme tão sombrio quanto o interior do protagonista ou pelo
momento em que ele vive e usa o contraste de luz para relevar as nuances
vividas por João Carlos. Ambos os longas são impressionantes. Ambos os
protagonistas são impressionantes. E melhor de tudo é ver como os dois
abraçaram suas respectivas artes e se jogam no mundo através delas, por elas e
tendo nelas seus maiores escudos contra os preconceitos da humanidade. São duas
figuras que, como qualquer bom brasileiro, sofrem, mas, independe do que
aconteça, se erguem do mais profundo do poço e dão a volta por cima.
*Sandro Augusto é estudante do oitavo
semestre do curso de história da UFRB e professor estagiário na Escola Estadual
Rômulo Galvão e bolsista de iniciação à docência (Pibid) na Escola Estadual
Edvaldo Brandão Correa, levou os alunos do oitavo ano/sétima série (entre 12 e
14 anos) desta instituição para assistirem ao filme “My name is now, Elza
Soares”.
Após a apresentação do filme "Castanha", o diretor Davi Pretto, conversou com o público no Auditório do Centro de Artes, Humanidades e Letras da UFRB, na cidade de Cachoeira. |
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