Especial X Panorama Internacional Coisa de Cinema. Filmes: "O Clube" e "A História da Eternidade"
O terceiro dia do X Panorama
Internacional Coisa de Cinema iniciou com tudo na manhã desta sexta-feira (31)
na cidade de Cachoeira, onde o festival é produzido em parceria com o Cineclube
Mário Gusmão, uma iniciativa da professora Cyntia Nogueira, docente da
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia no curso de Cinema e Vídeo. O
primeiro filme a ser apresentado foi o curta-metragem “O Clube”, de Allan
Ribeiro e, logo em seguida, o longa-metragem “A História da Eternidade”, de
Camilo Cavalcanti. “O Clube” conta a história do maior clube gay da América
Latina, o Turma OK, composto por um grupo de transformistas do Rio de Janeiro
que completou 53 anos recentemente. “A História da Eternidade” relata os
acontecimentos num pequeno vilarejo no sertão nordestino onde as histórias de
três mulheres muito fortes se cruzam e mudam em meio a acontecimentos
provocados pelos homens que estão à sua volta.
“O Clube” foi um filme que nasceu de um
parto complicado. Inicialmente, a produção desejava realizá-lo para comemorar
os 50 anos do clube, mas não conseguiam passar pelos editais que se
candidatavam, além disso, dois dos homens escolhidos para viverem os
protagonistas da história acabaram falecendo antes que o curta fosse rodado.
Finalmente, a proposta passou por um edital generoso e Allan Ribeiro pôde
filmá-lo em película. A história gira em torno de uma drag queen e suas
desavenças durante a apresentação em comemoração dos 53 anos do local. Para
fazer o filme, a produção conviveu com as drag Queens e tentou saber um pouco
sobre cada uma, para, então, escrever uma
história baseada em fatos reais e interpretada por quem as viveu. O resultado
disso tudo vai do perturbador ao cômico. Em alguns momentos o espectador rirá
das discussões das artistas, em outros, questionará muito sobre a vida e sobre
a forma como deveríamos ser livres, sem preconceitos ou medos.
Filme: "O Clube", de Allan Ribeiro |
O sertão nordestino já foi visto dezenas
de vezes em inúmeros trabalhos no cinema, mas poucas vezes tão bem representado
quanto em “A História da Eternidade”. O serão é um personagem indispensável
para se contar a história de Alfonsina, Querência e Dona das Dores, não é
falado se elas possuem algum parentesco, mas, representam três gerações que
poderiam ser filha, mãe e avó, respectivamente. Alfonsina é filha de Nataniel,
um home agressivo e autoritário, tem mais quatro irmãos, que mal são vistos
durante o longa, e um tio, Joãozinho, um artista epilético que é considerado um
louco pelo irmão, mas por quem Alfonsina é secretamente apaixonada. Querência
acabou de enterrar um filho e está tentando passar por isso quando o sanfoneiro
cego, Aderaldo, se declara apaixonado e pronto para enfrentar tudo com ela.
Dona das Dores criou os filhos e ficou sozinha na aldeia enquanto eles ganharam
o mundo, ela espera, assim, ansiosa pela visita do neto Geraldo.
“A História da Eternidade” é apresentada
em três partes (capítulos/atos): Pé de galinha, que representa o resguardo que
as galinha fazem de si mesmas na copa das árvores, Pé de Bode, que representa a
exposição à qual esses animais estão sujeitos sendo criados no sertão para
servirem de alimento, e Pé de Urubu, referência clara à morte que acompanha
esses animais. Mas essas não são as únicas metáforas usadas no longa.
Cavalcanti optou por usar esse tipo de artifício em vários momentos. A
epilepsia de Joãozinho, por exemplo, é uma forma de mostrar como o homem está
preso nas amarras das dívidas com o irmão e pelo lugar onde vive. Aliás, a cena
em que Joãozinho (vivido de por Irandhir Santos de forma monstruosa) tem um
ataque epilético é uma das cenas mais arrepiantes e impressionantes do cinema
brasileiro dos últimos anos. A apresentação na única televisão da aldeia de um
programa sobre presas e predadores é uma metáfora sempre muito bem vinda sobre
a própria vida. A intensidade da luz, na maioria dos momentos, revela alguma
coisa sobre o que se passa no interior de cada personagem (ou de todos eles). A
chuva que chega perto do desfecho do longa é uma metáfora sobre a limpeza,
sobre a renovação, sobre coisas novas (boas e ruins). E por aí vai.
Filme: "A História da Eternidade", de Camilo Cavalcanti |
Inquestionavelmente, o filme é
construído sobre metáforas magníficas e possui interpretações memoráveis de
artistas como: Marcelina Cartaxo, Leonardo França, Débora Ingrid, Claudio
Jaborandy, Zezita Matos, Maxwell Nascimento e, claro, Irandhir Santos, atores e
atrizes que se entregam totalmente a personagens que refletem o local árido em
que vivem e que ainda guardam muito do que já ficou no passado. Entretanto,
também é feito de uma fotografia inspiradora realizada, basicamente, com luz
natural (daí as cenas mais escuras nos interiores das casas e o sol escaldante
no exterior) e baseada nas pinturas do italiano Michelangelo Caravaggio. Aliado
a isso, a direção de arte do filme é minimalista e é claro que todos os objetos
possuem muita história, como o sertão, são personagens do filme, só que dessa
vez, meros coadjuvantes que, juntos, formam um time implacável. Tudo o que se
vê aqui é lindo, mas o que se ouve não fica nem um pouco para trás. A trilha
sonora é delicada, propícia e arrepiante na maior parte do filme, dialogando
diretamente com os personagens, seu interior e suas reações, contando,
inclusive, com músicas de ninguém mais, ninguém menos que Dominguinhos. A
edição e a mixagem de som são ótimas e tornam o filme ainda mais perturbador.
Poucas sessões poderiam ser tão
satisfatórias quanto essa. Foram apenas dois filmes. Um feito no Rio de
Janeiro, a cidade maravilhosa, outro realizado no mais profundo sertão
nordestino (e Cavalcanti ainda faz questão de colocar imagens do mar, a paixão
de Alfonsina, durante o filme para lembrar o quanto o serão é árido e quente).
Um deles mostra artistas perfomistas e seus problemas durante a realização de
um show. Outro é um filme sobre mulheres e suas trajetórias. De certa forma, os
filmes dialogam a partir do momento em que são baseados nas visões femininas,
por um lado, homens sensíveis que se vestem e se portam como mulheres artistas
que são reprimidas por sua sensibilidade e feminilidade, sendo questionadas
inclusive dentro de uma sociedade dita moderna, por outro, mulheres que sofrem
nas mãos dos homens devido ao machismo evidenciado. Mesmo assim, mesmo com o
preconceito que assola essas almas muito femininas e belas, são elas que mandam
nos filmes, são elas que ditam o que acontecerá e quando acontecerá. Claro que,
como tudo na vida, em alguns momentos elas cometem erros e ficam sujeitas ao
preconceito de que tanto falo. Entretanto, isso não é o suficiente para
julgarmos essas pessoas como fracas ou qualquer coisa assim. Só serve para
lembrar que elas são tão humanas quanto qualquer um.
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