quinta-feira, 2 de outubro de 2014

DEPOIS DA CHUVA, de Cláudio Marques e Marília Hughes

Um filme tocante sobre o olhar da juventude em relação aos absurdos que resistiram na era pós Ditadura Militar no Brasil



Título Original: Depois da Chuva
Direção, Roteiro e Produção: Cláudio Marques e Marília Hughes
Elenco: Pedro Maia, Sophia Corral, Zeca Abreu, Ricardo Burgos, Paula Carneiro, Talis Castro, Victor Corujeira, Aícha Marques
Ano: 2014
Duração: 95 min.
Gênero: Drama / Histórico

O ano é 1984. Jovens de todo o país comemoram o que, teoricamente, seria o fim da Ditadura Militar. Em Salvador, Bahia, alguns estudantes se reúnem e exigem de uma escola da classe média que seja autorizada a criação de um grêmio estudantil para que os interesses dos alunos sejam explorados. Resistente, o corpo docente da escola aceita que a eleição para o grêmio, como a eleição para presidente no país, seja feita de forma indireta. Após vinte anos de repressão, alguns alunos acreditam que essa forma vá contra a democracia estabelecida para aniquilar com o regime ditatorial. Outros acreditam que conseguir o apoio da escola para a criação do grêmio já é uma vitória, e que a forma como isso será feito pela primeira vez não é muito relevante. Caio, um dos jovens, acredita que, assim como a política brasileira, a criação desse grêmio não mudará nada. Logo, ele decide continuar vivendo sua vida e esquecer as tais eleições para presidência do grêmio.
Dessa forma, o longa acompanha Caio, o protagonista, por todas as suas descobertas como adolescente e cidadão, seus anseios, problemas, incertezas, questionamentos. A sexualidade começa a aflorar de forma nítida quando o jovem se apaixona pela colega de classe, Fernanda, enquanto a política adentra em seu cotidiano na medida que o garoto começa a perceber o quanto as coisas ainda estavam erradas no país. Em uma das cenas mais expressivas do longa, por exemplo, os alunos se apresentam em uma espécie de show de talentos. Após um deles entoar ao som de um violão e de forma simples e “sensata” “Pra não dizer que eu não falei das flores”, canção símbolo da época de autoria de Geraldo Vandré, Caio e seus amigos aparecem no palco travestidos e cantando um rock do qual quase não compreendemos a letra. Mas também, não é preciso que entendamos qualquer coisa do que é dito. Segundos antes da cena começar, a Semana de Arte Moderna de 1922 é citada com ênfase. Sobre o olhar reprovador da professora e de alguns alunos, bem como aconteceu com os artistas do início do século passado, Caio e seus colegas que estão no palco quebram com os padrões vigentes de forma que até Anita Malfati e Mario de Andrade se orgulhariam de poder se levantar para aplaudir. No final das contas, a professora e uma minoria do corpo discente permanece estático e mudo. A maioria maciça aplaude aos gritos, aprovando a performance.


Essa é, sem dúvida, a primeira forma de o protagonista externar sua indignação sobre o que está acontecendo, sobre a sociedade e a política brasileira. Depois ainda virá um problema com uma redação muito realista, a qual a professora considera um ultraje. Nela, Caio expressa sua opinião de como nada mudou. O que podemos concluir da leitura feita posteriormente é que o garoto pensa que não basta que um militar não esteja na presidência no Brasil, para que as coisas mudem, é preciso que o pensamento da população mude e que ela lute por um país melhor, não apenas na teoria, mas na prática. E se for preciso querer e fazer o impossível para chegar a essas melhorias, que seja. Mas a professora não é a única a reprimir as atitudes do menino. O diretor da escola também faz isso. E aí nota-se uma comparação clara: o ambiente escolar, os muros que cercam a escola nada mais são que não as barreiras impostas por uma ditadura. A escola nada mais é que a representação do regime ditatorial que governou o país durante vinte anos, alegando que tudo sempre estava muito bem e que o país evoluía cada dia mais. Os pais de Caio também não ajudam muito para que o jovem seja compreendido. A mãe é relapsa, do tipo que está muito mais preocupada com sua imagem, chegando a justificar a falta de atenção para com o filho afirmando que ela não dá problemas para ele, e que ele não pode fazer o mesmo. O pai, que mora em outra casa, mal liga para o garoto.
Em meio a toda essa ficção, Cláudio Marques e Marília Hughes trazem cenas reais da época. Misturando cenas ficcionais, baseadas na juventude do diretor, com cenas documentais coletadas por todo o país que mostram Brasília e o Rio de Janeiro, por exemplo. Assim, em, inacreditavelmente, seu primeiro longa-metragem, Cláudio e Marília unem a ficção e a realidade da forma mais inteligentes possível. Cenas que trazem cidadãos sendo reprimidos pela polícia militar, comícios de políticos que prometem melhorar o país, cenas que mostram reações positivas da população em manifestações (a maioria sufocada pela polícia), momentos cruciais para a política nacional, como a eleição de Tancredo Neves como presidente e a eclosão da AIDS no mundo. Propagandas e outras referências, como músicas, revelam a forma como a sociedade vivia e via o mundo. De forma séria e discreta, os autores brincam com esses elementos, com frases e nomes de pessoas importantes, fazendo alusões espertas e concisas a coisas e pessoas que marcaram a história contemporânea do Brasil. Tais cenas, ficcionais (geralmente alternando com muita ou pouca luz) ou documentais (aparentemente amadoras para os dias de hoje), são mostradas com poucos cortes, fazendo com que o ritmo do longa flua naturalmente e com closes intimistas que se aproximam de determinadas partes dos corpos dos personagens.


Outro trabalho impressionante dos diretores é em relação aos atores. Pedro Maia, escolhido a dedo para viver Caio, por exemplo, passou por um processo de preparação de oito meses. Tempo suficiente para que os autores conhecessem o jovem a ponto de modificar o roteiro original para que Caio e Pedro não fossem tão diferentes. A caracterização é tão forte que as poucas expressões de Pedro Maia, em sua estreia no cinema, denotam o que se passa no interior de Caio. Aliás, o que se passa no interior de todos os jovens (do Brasil e do mundo) conscientes, não importa a época, quando percebem que alguma coisa está errada no país em que vivem. Mais que isso: Caio é a personificação do próprio país que está tentando gritar o medo, o desespero, a agonia que sente, mas não pode por estar sendo reprimido por todos à sua volta. E talvez é aí que esteja a beleza da relação do protagonista com Fernanda. Com ela, representada de forma simples e muito tocante por Sophia Corral, Caio pode ser ele mesmo. A personagem também foi adaptada para que Sophia e Fernanda fossem mais semelhantes. Sofia, aliás, foi escolhida justamente por ela e Pedro Maia já terem uma relação de amizade próxima. Segundo os diretores, os coadjuvantes da escola também eram os colegas de classe de Pedro, o que facilitava o ator se sentir mais a vontade durante as filmagens. As demais relações de Caio podem ser resumidas em relações que o oprimem (com a mãe, com o pai, com os professores, com os colegas de escola) e em relações que o apoiam (de forma geral, com os amigos de verdade, pessoas mais velhas que conheceu fora do colégio).

A princípio, Caio está distante das eleições para o grêmio estudantil, mais tarde, convencido por Fernanda, o jovem decide se tornar o presidente do grêmio e é eleito. Pouco antes disso, Tancredo Neves, a esperança de o Brasil se tornar um país democrático e justo, é eleito presidente da nação. Em uma cena memorável, o hino nacional é tocado (provando, mais uma vez, o quanto a trilha sonora desse filme é impressionante) enquanto jovens andam pelas ruínas de uma imensa fábrica de cimento na capital baiana. Quase que paralelamente à morte do presidente, um jovem se suicida. Preocupados com o passado histórico do Brasil e resgatando arquivos impressionantes, Cláudio e Marília criaram uma história simples, que pode ser adaptável para qualquer tempo e qualquer ser humano, ao passo que é muito fácil se identificar com os personagens. Um desses resgates, e uma dessas identificações, fica pelo destaque dado à morte de Tancredo: o país se torna órfão num momento em que todos precisam da figura paterna representada pelo líder, pelo pai que podia resolver os problemas e que traria certa salvação da ditadura. Ao menos essa era a esperança do povo. O que “Depois da Chuva” faz com quem o assiste, principalmente com os jovens, tenha esse indivíduo vivenciado a ditadura ou não, tenha sido ele ou sua família perseguido pelo regime ou não, saiba ele ou não tudo o que o período de vinte anos significou para a nação, é tocar o mais profundo possível de sua alma como ser humano e cidadão brasileiro.

Elenco e equipe 46º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2013, onde venceu os prêmios de melhor ator (Pedro Maia), melhor roteiro (Cláudio Marques e Marília Hughes) e melhor trilha sonora)

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