Um filme tocante sobre o olhar da
juventude em relação aos absurdos que resistiram na era pós Ditadura Militar no
Brasil
Título Original: Depois da Chuva
Direção, Roteiro e Produção: Cláudio
Marques e Marília Hughes
Elenco: Pedro Maia, Sophia Corral, Zeca
Abreu, Ricardo Burgos, Paula Carneiro, Talis Castro, Victor Corujeira, Aícha
Marques
Ano: 2014
Duração: 95 min.
Gênero: Drama / Histórico
O ano é 1984. Jovens de todo o país
comemoram o que, teoricamente, seria o fim da Ditadura Militar. Em Salvador,
Bahia, alguns estudantes se reúnem e exigem de uma escola da classe média que
seja autorizada a criação de um grêmio estudantil para que os interesses dos
alunos sejam explorados. Resistente, o corpo docente da escola aceita que a eleição
para o grêmio, como a eleição para presidente no país, seja feita de forma
indireta. Após vinte anos de repressão, alguns alunos acreditam que essa forma
vá contra a democracia estabelecida para aniquilar com o regime ditatorial.
Outros acreditam que conseguir o apoio da escola para a criação do grêmio já é
uma vitória, e que a forma como isso será feito pela primeira vez não é muito
relevante. Caio, um dos jovens, acredita que, assim como a política brasileira,
a criação desse grêmio não mudará nada. Logo, ele decide continuar vivendo sua
vida e esquecer as tais eleições para presidência do grêmio.
Dessa forma, o longa acompanha Caio, o
protagonista, por todas as suas descobertas como adolescente e cidadão, seus anseios,
problemas, incertezas, questionamentos. A sexualidade começa a aflorar de forma
nítida quando o jovem se apaixona pela colega de classe, Fernanda, enquanto a
política adentra em seu cotidiano na medida que o garoto começa a perceber o
quanto as coisas ainda estavam erradas no país. Em uma das cenas mais expressivas
do longa, por exemplo, os alunos se apresentam em uma espécie de show de talentos.
Após um deles entoar ao som de um violão e de forma simples e “sensata” “Pra
não dizer que eu não falei das flores”, canção símbolo da época de autoria de
Geraldo Vandré, Caio e seus amigos aparecem no palco travestidos e cantando um
rock do qual quase não compreendemos a letra. Mas também, não é preciso que
entendamos qualquer coisa do que é dito. Segundos antes da cena começar, a
Semana de Arte Moderna de 1922 é citada com ênfase. Sobre o olhar reprovador da
professora e de alguns alunos, bem como aconteceu com os artistas do início do
século passado, Caio e seus colegas que estão no palco quebram com os padrões
vigentes de forma que até Anita Malfati e Mario de Andrade se orgulhariam de
poder se levantar para aplaudir. No final das contas, a professora e uma
minoria do corpo discente permanece estático e mudo. A maioria maciça aplaude
aos gritos, aprovando a performance.
Essa é, sem dúvida, a primeira forma de
o protagonista externar sua indignação sobre o que está acontecendo, sobre a
sociedade e a política brasileira. Depois ainda virá um problema com uma
redação muito realista, a qual a professora considera um ultraje. Nela, Caio
expressa sua opinião de como nada mudou. O que podemos concluir da leitura
feita posteriormente é que o garoto pensa que não basta que um militar não
esteja na presidência no Brasil, para que as coisas mudem, é preciso que o
pensamento da população mude e que ela lute por um país melhor, não apenas na
teoria, mas na prática. E se for preciso querer e fazer o impossível para
chegar a essas melhorias, que seja. Mas a professora não é a única a reprimir
as atitudes do menino. O diretor da escola também faz isso. E aí nota-se uma
comparação clara: o ambiente escolar, os muros que cercam a escola nada mais
são que não as barreiras impostas por uma ditadura. A escola nada mais é que a
representação do regime ditatorial que governou o país durante vinte anos,
alegando que tudo sempre estava muito bem e que o país evoluía cada dia mais.
Os pais de Caio também não ajudam muito para que o jovem seja compreendido. A
mãe é relapsa, do tipo que está muito mais preocupada com sua imagem, chegando
a justificar a falta de atenção para com o filho afirmando que ela não dá
problemas para ele, e que ele não pode fazer o mesmo. O pai, que mora em outra
casa, mal liga para o garoto.
Em meio a toda essa ficção, Cláudio Marques
e Marília Hughes trazem cenas reais da época. Misturando cenas ficcionais,
baseadas na juventude do diretor, com cenas documentais coletadas por todo o
país que mostram Brasília e o Rio de Janeiro, por exemplo. Assim, em,
inacreditavelmente, seu primeiro longa-metragem, Cláudio e Marília unem a
ficção e a realidade da forma mais inteligentes possível. Cenas que trazem cidadãos
sendo reprimidos pela polícia militar, comícios de políticos que prometem
melhorar o país, cenas que mostram reações positivas da população em manifestações
(a maioria sufocada pela polícia), momentos cruciais para a política nacional,
como a eleição de Tancredo Neves como presidente e a eclosão da AIDS no mundo.
Propagandas e outras referências, como músicas, revelam a forma como a
sociedade vivia e via o mundo. De forma séria e discreta, os autores brincam
com esses elementos, com frases e nomes de pessoas importantes, fazendo alusões
espertas e concisas a coisas e pessoas que marcaram a história contemporânea do
Brasil. Tais cenas, ficcionais (geralmente alternando com muita ou pouca luz) ou
documentais (aparentemente amadoras para os dias de hoje), são mostradas com
poucos cortes, fazendo com que o ritmo do longa flua naturalmente e com closes
intimistas que se aproximam de determinadas partes dos corpos dos personagens.
Outro trabalho impressionante dos
diretores é em relação aos atores. Pedro Maia, escolhido a dedo para viver
Caio, por exemplo, passou por um processo de preparação de oito meses. Tempo
suficiente para que os autores conhecessem o jovem a ponto de modificar o
roteiro original para que Caio e Pedro não fossem tão diferentes. A
caracterização é tão forte que as poucas expressões de Pedro Maia, em sua
estreia no cinema, denotam o que se passa no interior de Caio. Aliás, o que se
passa no interior de todos os jovens (do Brasil e do mundo) conscientes, não
importa a época, quando percebem que alguma coisa está errada no país em que
vivem. Mais que isso: Caio é a personificação do próprio país que está tentando
gritar o medo, o desespero, a agonia que sente, mas não pode por estar sendo
reprimido por todos à sua volta. E talvez é aí que esteja a beleza da relação
do protagonista com Fernanda. Com ela, representada de forma simples e muito tocante
por Sophia Corral, Caio pode ser ele mesmo. A personagem também foi adaptada
para que Sophia e Fernanda fossem mais semelhantes. Sofia, aliás, foi escolhida
justamente por ela e Pedro Maia já terem uma relação de amizade próxima.
Segundo os diretores, os coadjuvantes da escola também eram os colegas de
classe de Pedro, o que facilitava o ator se sentir mais a vontade durante as
filmagens. As demais relações de Caio podem ser resumidas em relações que o
oprimem (com a mãe, com o pai, com os professores, com os colegas de escola) e
em relações que o apoiam (de forma geral, com os amigos de verdade, pessoas
mais velhas que conheceu fora do colégio).
A princípio, Caio está distante das
eleições para o grêmio estudantil, mais tarde, convencido por Fernanda, o jovem
decide se tornar o presidente do grêmio e é eleito. Pouco antes disso, Tancredo
Neves, a esperança de o Brasil se tornar um país democrático e justo, é eleito
presidente da nação. Em uma cena memorável, o hino nacional é tocado (provando,
mais uma vez, o quanto a trilha sonora desse filme é impressionante) enquanto
jovens andam pelas ruínas de uma imensa fábrica de cimento na capital baiana.
Quase que paralelamente à morte do presidente, um jovem se suicida. Preocupados com o
passado histórico do Brasil e resgatando arquivos impressionantes, Cláudio e
Marília criaram uma história simples, que pode ser adaptável para qualquer tempo
e qualquer ser humano, ao passo que é muito fácil se identificar com os
personagens. Um desses resgates, e uma dessas identificações, fica pelo
destaque dado à morte de Tancredo: o país se torna órfão num momento em que
todos precisam da figura paterna representada pelo líder, pelo pai que podia
resolver os problemas e que traria certa salvação da ditadura. Ao menos essa
era a esperança do povo. O que “Depois da Chuva” faz com quem o assiste,
principalmente com os jovens, tenha esse indivíduo vivenciado a ditadura ou
não, tenha sido ele ou sua família perseguido pelo regime ou não, saiba ele ou
não tudo o que o período de vinte anos significou para a nação, é tocar o mais
profundo possível de sua alma como ser humano e cidadão brasileiro.
Elenco e equipe 46º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2013, onde venceu os prêmios de melhor ator (Pedro Maia), melhor roteiro (Cláudio Marques e Marília Hughes) e melhor trilha sonora) |
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