sábado, 28 de junho de 2014

002. DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL, de Glauber Rocha

Denunciando a realidade nordestina, Glauber Rocha questiona: quem é o herói e quem é o vilão? Quem é Deus? Quem é o Diabo?
Nota: 9,8


Título Original: Deus e o Diabo na Terra do Sol
Direção: Glauber Rocha
Elenco: Geraldo Del Rey, Yoná Magalhães, Othan Bastos, Maurício do Valle, Lidio Silva, Sonia Dos Humildes, João Gama, Antonio Pinto, Milton Rosa, Roque Araújo
Produção:
Roteiro: Glauber Rocha, Walter Lima Jr. E Paulo Gil Soares
Ano: 1964
Duração: 119 min.
Gênero: Drama

CONFIRA O TRAILER DO FILME:


Manuel e Rosa são um casal que vive no sertão nordestino trabalhando sol a sol para garantir seu sustento. Certo dia, Manuel conhece um homem, Sebastião, que já está sendo considerado santo pelo povo da região. Esperançoso, Manuel encontra a esposa a esposa que, indiferente, fingi não ouvir uma palavra do marido. Como de costume, o vaqueiro segue seu rumo e leva pouco mais de uma dezena de vacas até um coronel. Chegando lá, Manuel informa que perdeu alguns bichos no meio do caminho. O coronel lhe nega qualquer pagamento, alegando que os animais que morreram eram os de Manuel. Revoltado, o vaqueiro acaba matando o latifundiário. Desesperado e arrependido deste pecado, Manuel corre até Sebastião, pedindo por clemência.


Não se engane se imagina que, depois de todos os acontecimentos, Manuel será perdoado de forma bela e que poderá seguir sua vida sem preocupações. Muito pelo contrário. Sebastião faz promessas e mais promessas ao povo nordestino. Como Antonio Conselheiro, quer que o povo compreenda que todos devem lutar contra o sistema que privilegia os latifundiários. De forma utópica, garante à população que, se tiveram fé em Deus, quando morrerem, os pobres ficarão ricos. Já os ricos, ficarão pobres nas “profundezas do inferno”. Enquanto o “santo” prega suas visões, a igreja e os latifundiários contratam Antonio das Mortes para dar fim em Sebastião. Em uma das cenas mais impressionantes do cinema, entretanto, o beato comete um assassinato sem perdão. Após Manuel subir um morro com uma pedra na cabeça, o “Santo” ordena que ele traga a mulher (descrente de tudo) para o topo junto com uma criança. O que vem a seguir é aterrador: Sebastião apunhala a criança frivolamente. Ameaçada, Rosa consegue pegar o punhal e mata o tal “santo”. Antonio das Mortes, chega ao local, comete uma chacina, verifica que Sebastião já está morto e deixa Manuel e Rosa vivos para contar a história. Acompanhados pelo cego Julio, Rosa e Manuel acabam encontrando Corisco, herdeiro de Lampião, que jurou vingança quando soube dos assassinatos do amigo e de Maria Bonita. Daí pra frente, Manuel se tornará um cangaceiro e Rosa os acompanhará para todos os lugares. Antonio das Mortes, estimulado pelo governo, está atrás de Corisco.


“Deus e o Diabo na Terra do Sol” é considerado, por muitos críticos e especialistas o melhor filme da história do cinema brasileiro. Os que discordam dessa afirmação não se opõe ao fato de ser um dos filmes mais importantes do cinema nacional. Glauber Rocha, o gênio por trás da obra, e o precursor do cinema novo no Brasil, apresenta a verdadeira identidade do povo nordestino. Revela a inocência dos pobres e a ganância dos ricos. Mostra que o povo, em sua maioria, estava sujeito às influências de qualquer homem que pudesse prometer um futuro melhor, mesmo que depois da morte. Por outro lado, também mostra a igreja e os latifundiários que desejavam permanecer no poder e, para tanto, não mediam esforços para isso. Depois, Glauber confunde nossos pensamentos quando vemos Sebastião sacrificando um bebê. Por que Deus precisaria de uma alma tão pura e inocente? Quem, realmente, era Sebastião? Representante de Deus ou do Diabo? Mais à frente, Manuel encontrará Corisco, o representante dos anti-heróis do nordeste, os cangaceiros. A princípio, Corisco de posta como um defensor dos pobres e oprimidos, um homem justo e fiel a sua causa: impedir que os pobres morram de fome. No momento seguinte, estupra uma noiva e ordena que Manuel “castre” o noivo, que assistiu a tudo sem poder fazer nada. Quem é Corisco? Representante de Deus ou do Diabo? E aquela Igreja Católica e os latifundiários? São eles Deuses que defendem o povo das interpretações tortas de Sebastião, ou serão Diabos que querem permanecer no poder? 

O roteiro do filme, por trazer tantos questionamentos e tantas dúvidas aos espectadores, pode ser o maior trunfo de Glauber Rocha, mas não é só dele que o filme é feito. Claro que, em alguns momentos, essas dúvidas levam a confusão ao extremo e o filme parece se perder em sua própria filosofia. Mas isso é recuperado com rapidez e tudo volta a ser compreensível. Glauber reconhece essas possibilidades. Assim, não se prende apenas ao roteiro para tornar “Deus e o Diabo na Terra do Sol” um filme tão importante para o cinema nacional. Este longa foi uma das grandes produções nacionais desde que o cinema brasileiro surgiu. As denúncias feitas por Glauber já haviam sido feitas em grandes clássicos da literatura nacional, mas era a primeira vez que aquilo tudo se tornava mais palpável para populações do sul e do sudeste do país, por exemplo, que viviam longe de toda a realidade sertaneja. A trilha sonora, composta por Sérgio Ricardo e com letras de Glauber Rocha, mistura a canção de cordel com elementos da música de Villa-Lobos, identificando-se os elementos culturais da região em cada música. Vale apontar que a trilha, aqui, é essencial. O filme não chega a ser um musical, mas é a música de cordel cantada em off em momentos específicos que contam a história dos personagens. A fotografia de Roque Araújo surpreende em todos os sentidos: por ser um filme pioneiro no cinema novo e por ser um trabalho feito em filme ainda preto e branco. A maestria de Roque é vista, especialmente, pela forma incrível como os espaços sertanejos são mostrados. Inúmeras vezes, vemos cenas panorâmicas de tirar o fôlego, que mostram a realidade física do sertão nordestino. A qualidade do sonora de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, justamente por ser um filme antigo e por misturar algumas músicas aos diálogos, também surpreende e é excelente. A edição de Rafael Justo Valverde mistura momentos acelerados com momentos mais monótonos, o que confere mais verossimilhança em relação ao contexto representado. Por fim, aliando-se a toda a qualidade técnica, estão os intérpretes de personagens tão bem criados por Glauber e desenvolvidos pelo elenco.


Geraldo Del Rey traz um Manuel que exala esperança, que crê em Deus e nos milagres que ele pode realizar. Quando Manuel conhece Sebastião, entretanto, seu desespero confunde sua fé e ele acaba acreditando que o “padrinho” é um mensageiro do Senhor que veio para lhe trazer uma vida melhor. Mesmo depois que Rosa mata Sebastião, Manuel continua fiel ao “santo”, chegando a entrar para o cangaço para “vingar a morte do padim”. Del Rey é o maior responsável por nos confundir entre o que representa Deus e o que representa o Diabo. Na cena em que Corisco ordena que ele castre o tal noivo, Manuel segura, em uma mão, uma cruz, e, na outra, a faca para fazer o serviço. Aliás, quando entra para o cangaço, Manuel passa a se chamar Satanás. Ao lado de Geraldo, está Yoná Magalhães, como Rosa. Apesar de a personagem não ter muitas falas (característica que marca o todo o filme), Magalhães se sustenta com o olhar e com os gestos. Rosa é uma mulher que parece cética para uns, mas pode ser vista como uma mulher realista. A cena em que a personagem mata Sebastião, é vista, pelo espectador, como um momento de libertação. Não há como não ver na Rosa de Magalhães uma espécie de salvadora que liberta o povo das loucuras de um homem que se autoproclamava santo. Maurício do Valle, intérprete de Antônio das Mortes, possui muito mais falas que Yoná, mas sustenta o personagem pela expressão e pela dúvida. Antônio não sabe qual o melhor caminho, qual é o caminho mais certo, não sabe o que Deus acha melhor, não sabe quem é o verdadeiro representante de Deus. Othon Bastos entra depois da metade do filme, mas ele é um dos personagens mais fortes do elenco e do cinema novo. Corisco é um homem astuto, decidido e corajoso, que defende os oprimidos. Em pelo menos três momentos, Othon toma a cena com monólogos poéticos que parecem ter vindo de grandes peças shakespearianas, mas são verdadeiros momentos escritos por um homem que conhece de berço a realidade do povo nordestino, Glauber Rocha.


“Deus e o Diabo na Terra do Sol”, que completa 50 anos em 2014, é um dos filmes mais expressivos do cinema brasileiro. Sem dúvida, marcou uma época e um estilo de filmes muito particulares. Não há como questionar a beleza na intenção de Glauber Rocha em denunciar os problemas brasileiros. Problemas, que assolaram o país durante séculos e mais séculos, mas que persistiram no nordeste ainda muito depois de o sistema ser modificado. Os diálogos intensos, os monólogos impetuosos, as canções de cordel, o modo de falar regional, as cenas estarrecedoras, o ritmo alternado, o cenário árido, as interpretações marcantes e a realidade assombrosa fazem de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” um filme completo. Mas, de tudo isso, o que mais adentra na alma do espectador são as dúvidas, as questões, as incertezas, enfim, as interrogações levantadas pelo longa. Quem é Deus? Quem é o Diabo? O título em inglês do filme foi estabelecido como “Black God, White Devil” (Deus Negro, Diabo Branco), mas será que é tão simples assim? Será que basta influenciar a mente do espectador a crer que nem tudo é o que parece? Ou o buraco é mais embaixo? Aqui, temos apenas uma certeza: todos estão na Terra do Sol, do Sol escaldante, do Sol impiedoso, do Sol incessante. Mas quem é Deus? Quem é o Diabo? Isso não podemos afirmar.


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