Um filme sutil e sensível que apresenta
uma paixão intensa e real, regada a frontal, fanta laranja, muito gelo e dois
dedos d’água.
João é um adolescente ignorado pela
família e pelos colegas de escola. Viciado em calmantes, o garoto acaba se
tornando depressivo e os pais decidem interná-lo em uma clínica psiquiátrica.
Lá, João conhece Judite, uma dependente química 16 anos mais velha que ele, HIV
positivo em fase terminal. Além dela, o menino conhece outras pessoas, novas
histórias, diferentes realidades, futuros incertos. Apesar de estarem uma
clínica psiquiátrica, João e Judite acabam se apaixonando e iniciam um romance
intenso. Nesse contexto, João parece disposto a viver o momento e deixar que as
coisas aconteçam naturalmente, ao passo que Judite sabe que sua morte próxima
abalará o garoto.
“Boa Sorte” é baseado no conto de Jorge
Futardo, “Frontal com Fanta”, e possui roteiro do próprio escritor em parceria
com o filho Pedro Furtado. Apesar de o roteirista ser bem conhecido pelo
público tanto por trabalhos na televisão quanto para o cinema – o que inclui
filmes como “Ilha das Flores” (1989), “Caramuru – A Invenção do Brasil” (2001),
“O Homem que Copiava” (2003), “Meu tio Matou um Cara” (2004), “Decamerão, a Comédia
do Sexo” (2009) e “Doce de Mãe” (2012) – Carolina Jabor havia dirigido apenas
um longa metragem – o documentário “O Mistério do Samba” (2008) – antes de
encarar “Boa Sorte”, seu primeiro longa de ficção. Nenhum deles – tanto Furtado
quanto Jabor – decepcionam. O roteiro é conciso e simples, o que facilita o
entendimento para qualquer tipo de público. Não existem grandes nuances. Furado
diz o que quer dizer, mostra uma realidade pouco vista no cinema brasileiro e
apresenta um desfecho previsível, mas nem por isso, decepcionante. Por outro
lado, Carolina tem a sensibilidade necessária para levar o argumento para a
tela de forma a emocionar o espectador. Sem ser apelativa, a diretora mostra o
romance de João e Judite como qualquer outro amor entre dois jovens, onde existem
descobertas, medos, delírios. Além disso, a diretora opta por planos simples, o
que torna tudo mais natural e cotidiano, lembrando que os próprios personagens
são tão comuns quanto qualquer outra pessoa no mundo.
Apesar de toda essa simplicidade, deve-se
destacar o uso de metáforas sutis usadas quase que o tempo todo. O maior prazer
de João até agora é tomar frontal com fanta laranja. Segundo o jovem, quando o
faz, ele se torna invisível, pode entrar onde quiser, olhar para quem quiser,
fazer o que quiser – com tanto que não toque em ninguém – que jamais será
notado. Uma referência clara a como os jovens são ignorados pela sociedade e
pelos pais, que estão mais preocupados em ganhar dinheiro e em viver suas vidas
mesquinhas. A doença de Judite, sem dúvida, também pode ser vista como uma
maneira de dizer que todos estamos doentes de alguma forma. Contribuindo para
essas representações apuradas, ainda há a direção de arte perspicaz de Claudio
Amaral Peixoto. Cada ambiente do filme reproduz o interior dos personagens que
nele vivem. A clínica, por exemplo, é um prédio velho, sujo e feio, como seus
habitantes, parece doente, mal cuidado, esquecido por aquela sociedade
mesquinha e egoísta. A casa da família de João é uma completa bagunça, o que
mostra como as cabeças dos pais, do irmão e do próprio João vivem em um
verdadeiro caos. As roupas que os personagens usam, por outro lado, evidenciam
sua personalidade: Judite é alternativa, sempre usando roupas diferentes – uma
eterna metamórfica -, João é mais neutro, mais esquecido, sendo visto com
roupas mais cruas.
Após ler o conto de Jorge Furtado,
Deborah Secco, apaixonada por Judite, procurou o escritor para comprar os
direitos para torná-lo um filme. Quando a atriz descobriu que os direitos já
haviam sido comprados por Carolina Jabor, implorou por um teste para que
pudesse viver a personagem. Jabor aceitou e Deborah foi selecionada. E, com o
perdão da piada, que sorte foi a atriz ter insistido. Como a própria Deborah
apontou, essa é a personagem de sua carreira. Deborah, mas uma vez, prova que
há muito vem deixando de lado qualquer estereótipo de mulher bonita e sensual,
tornando-se uma das atrizes mais versáteis e inteligentes de sua geração. Como
Judite ela emociona, excita e choca, vencendo o desafio de interpretar a
personagem mais icônica e interessante de sua carreira. Apesar de ter feito
alguns poucos trabalhos destacáveis no cinema, João Pedro Zappa não havia
protagonizado nenhum filme até viver o João de “Boa Sorte”. Ainda assim, o ator
mostra a que veio e, diferente de Deborah Secco que possui os momentos
despojados de Judite para brincar e extravasar um pouco com a personagem, lida
bem com a neutralidade de João, brincando de forma mais contida, sempre
lembrando que o personagem é um jovem ignorado e nunca notado por ninguém. A
química entre os atores flui naturalmente e nada na relação de João e Judite
parece ser forçado, muito pelo contrário, tudo é muito intenso e inspirador.
Como todo o restante do longa, os demais
atores selecionados são discretos e compõe o filme cada um à sua maneira.
Cássia Kis Magro faz uma participação rápida como a médica responsável pela
clínica, uma mulher que, como qualquer outro personagem alienado, não dá a
mínima para os jovens, assim como os pais de João, vividos por Felipe Camargo e
Gisele Fróes. Deve-se destacar, entretanto, Pablo Sanábio, como o também
paciente da clínica Felipe, um rapaz expressivo, um artista que não se define
como louco, afinal “louco que é artista, não é louco, é artista”, Pablo é, de
certa forma, a manifestação das indignações dos jovens, é a voz que grita e
escancara a forma como os jovens são tratados e ignorados. Por fim, Fernanda
Montenegro é Célia, a avó de Judite. Diferente dos demais adultos do filme, ela
tenta compreender a neta. Não é preciso dizer que a atriz encara essa senhora
única, difícil de ser definida, com singularidade. Em certo momento, Fernanda
Montenegro, no auge de seus 85 anos, na pele dessa mulher mais do que pra
frente, denuncia a corrupção, os erros e pede por um Brasil melhor, depois,
chega em casa e, para esquecer as frustrações, bola um baseado em uma página da
bíblia, e o fuma, alegando que a maconha é a única droga que presta, pois é
barata e não faz mal a ninguém.
Com delicadeza e segurança, Caroline
Jabor trabalha com os atores o com o argumento que lhe foi disponibilizado para
apresentar um filme singelo, porém perturbador e muito reflexivo. Segundo ela
mesma, sua intenção era realizar um filme cotidiano e atual, mesmo que a
história se passe antes das grandes evoluções medicinais para que a AIDS
tivesse um tratamento diferenciado. Os personagens possuem diferentes
personalidades e formas de ver a vida. Cada um deles, provavelmente, fará com
que o espectador lembre das pessoas que o cercam em seu dia-a-dia e, por que não
afirmar, que a identificação com ao menos um deles será inevitável. “Boa Sorte”
é o tipo de filme que deixa dúvidas acerca da vida e da morte, todavia, não se
pode dizer que deixa dúvidas sobre ele mesmo. O longa sabe a que veio e atinge
seus propósitos ao denunciar uma sociedade “doente do corpo, do espírito” ao
abordar com simplicidade a história de um casal que aprende um com o outro.
Ele, aprendendo a viver. Ela, se preparando para a morte.
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